“Caso do lar da Lourinhã é apenas a ponta do icebergue”, Maria do Rosário Gama em entrevista ao jornal Público

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A Presidente da Direcção da APRe! deu uma entrevista à jornalista Sofia Neves do jornal Público, em que disse “que há falta de fiscalização nos lares portugueses e que o país já devia ter criado uma rede de lares públicos há muito tempo. “Estamos num país cada vez mais velho e com idosos empobrecidos, que não podem pagar sequer uma IPSS”, diz a responsável.

Como é que continuam a existir tantos casos de negligência e maus tratos em lares?

Acho que o que tem estado a ser desvendado é a ponta do icebergue e isto continua a acontecer por vários motivos. Primeiro, por baixa fiscalização, há muitos lares ainda ilegais a funcionar em Portugal. Segundo, porque muitos proprietários visam o lucro e não o bem-estar dos residentes. Em terceiro, porque os subsídios da Segurança Social são insuficientes para poder cobrir as despesas que os utentes residentes têm nos gastos.

O custo médio de um utente de um lar anda à volta dos 1200 euros. O lar que fechou na Lourinhã cobrava 1500 euros, já havia um lucro bastante grande por utente. Os directores e os administradores dos lares não fornecem aquilo que é necessário aos utentes e ficam com esse dinheiro. É o lucro excessivo de alguns que está agora a ser denunciado.

Penso que haverá muitos lares nestas circunstâncias, tanto legais como ilegais. Há situações absolutamente inacreditáveis. Nos lares onde as pessoas estão em enfermarias, acontecem maus tratos, há falta de higiene e carências alimentares, é evidente que os valores avultados que pagam serão apenas para preencher os bolsos de quem gere estes espaços. Quando cobram mais do que o custo médio, terão de ter lucro à custa das pessoas que lá residem.

Porque acha que estas situações não são denunciadas?

Deviam ser os próprios familiares a denunciar estas situações a partir do momento em que se apercebessem que os seus familiares estão a ser maltratados, mas às vezes não o fazem porque não têm possibilidades de levar os idosos para casa. Como é possível acontecerem casos como o da senhora que estava coberta de formigas? Os directores não vão aos lares?”

As IPSS queixam-se de que os valores que o Estado paga por cada pessoa não são suficientes. É verdade?

Não, não é suficiente. O que a Segurança Social paga é muito pouco. Nas IPSS, há pessoas que pagam a mensalidade na totalidade e outras que têm uma parte subsidiada pela Segurança Social, mas estes subsídios são baixos, não dão para cobrir os tais 1200 euros. No entanto, penso que quase todos estes casos noticiados têm acontecido em lares privados.

Há falta de fiscalização?

Sim, é preciso uma fiscalização mais acentuada e de surpresa, sem que o lar seja avisado, não sei é se há pessoal suficiente para fazer isso. No lar da Lourinhã, por exemplo, as funcionárias foram fazer uma limpeza apressada na noite anterior porque o lar ia ser alvo de fiscalização no dia seguinte.

Normalmente, estes casos aparecem na comunicação social quando as funcionárias são despedidas e denunciam as situações de maus tratos. Se isso não acontecer, muitas vezes ninguém denuncia. Também temos conhecimento de que há vários lares ilegais que são fiscalizados, fecham, e depois abrem noutro local, passado algum tempo. A fiscalização não pode acontecer uma vez por ano.

O Estado já não deveria ter uma rede de lares públicos?

Claro, há anos que falamos disso. Repare que não há nenhuma IPSS sem uma lista de espera, a oferta é pequena para a procura. Estamos num país cada vez mais velho e com idosos empobrecidos, que não podem pagar sequer uma IPSS.

Com lares públicos, haveria uma resposta mais adequada num país que está a envelhecer a uma grande velocidade. Além disso, era preciso uma boa rede de cuidados continuados, para os casos que precisam de mais assistência. É uma reivindicação antiga nossa, que não desistimos de propor à senhora ministra da Segurança Social.

Além da fiscalização e do aumento dos subsídios da Segurança Social, o que pode ser feito para impedir casos como o da Lourinhã?

Achamos, por exemplo, que os centros de saúde deveriam ter uma articulação permanente com os lares para acompanhar os idosos e evitar situações em que estão vários dias com feridas e sem tomar banho.

E, depois, é pensar a organização dos lares. Em muitos lares, há aquelas salas grandes onde se reúnem os utentes todos, como se houvesse homogeneidade das pessoas que ali residem. Isso não existe. Há pessoas com as capacidades intelectuais que ficam ao lado de pessoas com a saúde mais degradada. Pensávamos que, depois da pandemia, as coisas iam mudar, mas não, está tudo na mesma. Parece que não existiu nada que abanasse estas estruturas residenciais de modo a poderem dar uma resposta mais qualificada a quem as procura.

Além disso, as pessoas que trabalham nos lares são extremamente mal pagas, têm um trabalho pesadíssimo e, muitas delas, não tem formação. Tomara aos lares haver mais pessoas para trabalhar, mas é um trabalho muito duro, por turnos, nos fins-de-semana…

Lidar com pessoas já exige algumas capacidades. Nos casos das pessoas mais velhas e em situação de fragilidade, muito mais importante é a forma como os funcionários se relacionam. Muitas vezes, os funcionários são capazes de estar a limpar residente sem falar com eles, como uma coisa mecânica, e a dar comida sem conversar. É preciso um perfil específico e é preciso formação porque muitos funcionários não sabem lidar com os idosos, infantilizam-nos, tratam-nos como se fossem crianças, ralham, ameaçam e alguns até são capazes de ser agressivos.“