
Em Outubro de 2024 foi divulgada a versão preliminar de mais um «Livro Verde» da Segurança Social, solicitado pelo governo em funções em 2022, como documento base para mais uma reforma. Este tema tem sido objecto de análises pela economista Maria Clara Murteira, publicadas na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, onde foram colhidas a maior parte das considerações deste texto.
Agitou-se então, como habitualmente, o medo da escassez futura de recursos financeiros, num contexto desmentido pelas contas muito positivas do sistema, às quais se tentava contrapor exercícios prospectivos com horizontes de 50 anos (?!) efectuados, com métodos que no passado falharam sistematicamente, e se tentava criar a ilusão de que, com soluções de mercado, cujos riscos sistémicos não eram identificados, se podia resolver o (não) problema.
Uma análise das «prioridades estratégicas», tal como apresentadas — a «sustentabilidade financeira» e a «adequação das pensões» — permite concluir que os objectivos a destacar seriam: a redução dos custos do trabalho para o empregador, por redução da taxa contributiva global sobre os salários, compensada por uma contribuição sobre o valor acrescentado líquido gerado nas empresas, permitindo «criar emprego» e aumentar a «rentabilidade das actividades trabalho-intensivas», bem como um maior «crescimento das receitas contributivas»; e assustando, em contrapartida, com a reduções drásticas de emprego a induzir por novas tecnologias, num exercício de futurologia pouco fundamentado.
Seguia-se envolver o Estado na expansão de planos privados, por via do estímulo da poupança através de planos individuais de poupança-reforma, com inscrição automática dos trabalhadores e opção de saída, aos quais se consignariam também parcelas do IVA pago pelo subscritor, com um quadro regulamentar favorável e incentivos fiscais.
Também não se propunha reforço da provisão pública de rendimento na reforma. A adequação das pensões realizar-se-ia na esfera do mercado, sem escrutínio das soluções preconizadas. Ora a literatura económica sobre esta matéria não demonstra superioridade dos sistemas privados em relação aos públicos. Pelo contrário: os primeiros são tão vulneráveis como os públicos a riscos macroeconómicos, demográficos e políticos, e estão ainda expostos a outros mais (de gestão, investimento, dos mercados de anuidades, falta de concorrência, captura existencial… a experiência dos países que criaram planos privados de pensões evidencia graves problemas: a adesão aos planos foi muito baixa por falta de procura e os custos administrativos cobrados pelos fundos de pensões são elevados. Do que resultam retornos muito baixos, próximos de zero, tendo como quase única vantagem o benefício fiscal.
Em vez de ilusões de aumento de prestações geradas por esquemas de privatização, seria bem melhor concentrar a atenção na receita da segurança social, objecto de erosão consentida.
Por exemplo, quando se encaram remunerações acessórias de quadros dirigentes e superiores no plano fiscal, desde gratificações cobertas pelo regime das despesas confidenciais, atribuição de automóveis para uso pessoal, pagamento de despesas de viagem em serviço e fora dele, de hotelaria e outras ditas de representação, incluindo vestuário, usufruto de material informático e despesas de comunicação. Dirão que esses factos fiscais estão previstos na lei, com contrapartida em impostos pagos pelas empresas. Meia-verdade.
Nos extractos de baixa remuneração, faz-se a atribuição de cartões pré-pagos para compras em supermercados e outros comércios. Aqui, o tratamento fiscal limita-se à recuperação do IVA, não se verificando a razoabilidade de despesas em géneros para a empresa que os paga.
Tudo isto converge na fuga às contribuições, que nos mais vulneráveis pressiona a aceitação de trabalho informal.
Comum aos dois extractos sociais, o facto de visarem a redução das contribuições patronais e dos trabalhadores para a segurança social e o beneficiário ser… o Tesouro. Resulta assim um desvio de fundos a favor do aparelho das Finanças, deixando a Segurança Social e o factor Trabalho a contemplar a passagem do fluxo financeiro.
Acresce o alargamento da “faculdade” de a segurança social poder subscrever cada vez mais obrigações do tesouro, (muito) modicamente remuneradas, outra forma de limitar as receitas não provenientes de contribuições.
Mas voltemos à agenda. Sub-repticiamente aparecia ainda uma recomendação para acabar com a garantia das pensões mínimas a pretexto de reforçar a «eficácia na protecção contra o risco de pobreza na velhice», focalizando os recursos do sistema nas pessoas em situação de carência económica»; aquelas passariam, transitoriamente, ser submetidas aos procedimentos de condição de recursos, introduzindo-se depois um «mecanismo de valorização da carreira contributiva» no Complemento Solidário para Idosos (CSI).
E se o calendário subsequente à publicação não era favorável a uma implementação rápida das impopulares (e erradas) soluções apontadas, dada a convocação de eleições legislativas, era de esperar um regresso breve à agenda política, com discursos orientados para mudar a percepção colectiva sobre a situação orçamental da segurança social e tentar convencer os cidadãos da necessidade de uma mudança.
E cá está ela com a “novidade” de que “se somarmos as responsabilidades da Segurança Social com as da CGA [Caixa Geral de Aposentações] o saldo é deficitário”. Esta “novidade” impressionou o nosso Tribunal de Contas que, passando por cima da obrigação constitucional (artº 105, 1. b) de autonomização do Orçamento da Segurança Social no âmbito do OE, emitiu um parecer onde procura embrulhar conjuntamente os dois sistemas, incluindo ainda a parte não contributiva da Segurança Social. Esta última tentativa de junção não é legítima em função art.º 63, 4. da Constituição, onde em relação ao sistema contributivo se dispõe que “todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez…”, resultando que as suas contas são necessariamente segregadas da parte não contributiva, cujos encargos têm de ser financiados com transferências do OE e receitas fiscais.
Quanto à CGA, esta foi criada como regime de protecção social dos trabalhadores da função pública, em que a relação laboral se estabelece entre o trabalhador e o Estado, simultaneamente «empregador» e “garante de protecção social». E o seu financiamento é definido no Estatuto da Aposentação, como segue: «O Estado contribuirá anualmente para a CGA com a quantia necessária para assegurar o equilíbrio financeiro da instituição, inscrevendo a verba respectiva no orçamento de despesa do Ministério das Finanças». Este regime teve uma inflexão a partir de 2008, quando todos os serviços e organismos do Estado ficaram obrigados a contribuir para a CGA. Esta passou a ser financiada com quotizações dos trabalhadores, contribuições dos serviços e do próprio Estado. Mas, mesmo assim, continua a funcionar como uma conta corrente, sem défices, excedentes ou reservas que possam ser adicionados ou subtraídos aos que são inerentes à componente contributiva da segurança social. Acresce que este sistema foi ”fechado” em 2006 à admissão de novos subscritores, continuando a aumentar os pensionistas. Portanto, menos receita e mais despesa.
Nestes termos, não é possível sequer uma consolidação de contas das várias instituições; pelo contrário, só uma maior desagregação das suas receitas e despesas possibilitaria uma interpretação correta da sua situação orçamental, presente e futura. A menos que se queira construir um “facto” político para desencadear “reformas estruturais”.
Provavelmente, foi com esse intuito “reformista” que em Janeiro deste ano se criou mais um grupo de trabalho ao qual se fixou o objectivo reproduzido no início deste texto. Grandiloquente, decerto, mas que traduzido por “miúdos” se cifra em cortes nas prestações, obtenção de complementos de rendimento nos mercados financeiros, aumento da idade de reforma e fazer prevalecer o cálculo actuarial na fixação das prestações de reforma, como é típico nos sistemas de capitalização.
Em apoio destas propostas, será decerto mobilizado o argumento primário de que, no actual sistema de repartição, as pensões dos reformados são pagas pelas contribuições dos trabalhadores no activo; nunca se mencionando que, a seu tempo, todos foram ou são contribuintes cujos descontos deveriam ser objecto de justa actualização financeira, devidamente escrutinada, mas frequentemente esquecida, porque não serve a deslegitimação de direitos.
Debates e discursos sobre a sustentabilidade da segurança social, por vezes interessantes no plano intelectual e fonte de títulos de primeira página de jornais e de alinhamento na abertura de telejornais, convergem no semear da dúvida em quem emprega e em quem trabalha quanto ao interesse em pagar as contribuições, tornando-os mais permeáveis à aceitação e participação em esquemas de fuga, de consequências negativas. Quanto pior, melhor será a palavra de ordem oculta.
Mas, como dizia Annie Ernaux, prémio Nobel da Literatura em 2022, ao recordar lutas contra reformas da segurança social em França (1995), há que voltar a levantar a cabeça.
Lisboa, 27 de Junho, 2025
António Crisóstomo Teixeira
Associado n.º 1732
Artigo publicado nas Notícias nº 6 de Junho 2025