A dúvida

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Durante um período de séculos, a ideia de unidade europeia foi sonho de doutrinadores e apóstolos, até que a experiência que se viveu de 1914 a 1945 pareceu ter implantado – pelo sofrimento global vivido em resultado de duas guerras mundiais que pareceram vésperas do Apocalipse – e definitivamente adotado o credo da unidade europeia, parcela do globalismo nascido das interdependências. Infelizmente, o ano de 2016 parece ter acabado assombrado por uma nova temática dominada pela questão de saber se a União, dificilmente conseguindo forma legalmente consagrada pelo Tratado de Lisboa, conseguirá manter-se.

O desenvolvimento da globalização, menos determinada pela política e mais consequência dos avanços da ciência e da técnica, qualquer que tenha sido a causalidade, obrigou à redefinição das soberanias ocidentais, submetidas a uma nova hierarquia de modelos inscrita na Carta da ONU. Tudo parecia aconselhar a União, como resposta pela articulação de esforços, valores e objetivos, a aceitar a regionalização que também surgia no antigo “terceiro mundo”, ou mundo hegemonizado pela Frente Atlântica. A metamorfose soberana dos Estados da União, abrangendo seis em 1950 e 28 em 2013, não conseguiu que as populações compreendessem que o interesse comum tinha nos Conselhos uma espécie de câmara alta, no Parlamento uma câmara baixa, e na Comissão um ensaio de executivo, maneira verbal imperfeita de se aproximar a estrutura da compreensão das populações. Acontece porém que a mundialização, ao contrário dos Estados, que estão definidos por fronteiras territoriais, defina centros decisórios, e intervenções dos decisores, que muitos deles são centros não identificados, são antes, como já foi dito, nómadas, como por vezes as empresas, com pelo menos dois efeitos negativos: que as populações reconheçam que as políticas europeias foram furtivas porque os eleitorados não se sentiram envolvidos; em consequência, procuraram nos populismos crescentes reformulações inspiradas pela memória das antigas soberanias, parecendo ignorar que a circunstância mundial não é de regra regressível.

O ano de 2016 somou vários fatores que todavia implicam a pergunta da dúvida sobre a inevitabilidade de reforma e a avaliação da possibilidade. Pode começar-se pelo crescimento do que Charles Derber chamou “a maioria deserdada”, sendo inquietante a diferença do rendimento por cada habitante; a abstenção crescente torna-se evidente nas obrigações eleitorais; a radicalização do discurso político cresce, como acontece na Hungria e na Eslováquia; e finalmente a crise e a diversidade das respostas às migrações, ao mesmo tempo que a própria unidade interna de mais de um país é posta em causa, como acontece em Espanha, na Itália, em França, e teve sério agravamento com o resultado do referendo inglês no sentido de abandonar a União. Neste caso, não são apenas as questões financeiras e económicas que aumentam as preocupações, é a segurança em conflito com os deveres humanitários que levam a responsável pela segurança e defesa comum europeia a declarar que a União precisa de um exército, sem referir que o brexit inglês implica que a definição da pretendida autonomia de segurança e defesa europeia perde o maior exército e a maior esquadra do conjunto.

Parece mais inquietante do que apaziguador o recente discurso de Putin, alegadamente preocupado com o que considera, para o resumir, a degradação dos valores das sociedades civis europeias, tendo em vista as reformas que se vão tornando comuns na Europa quanto ao reconhecimento legal de alterações referentes à família e à disposição final da vida. Para um responsável que na sua terceira definição de governante se apresentou como o guia do Império do Meio, parece mais uma tentativa de reforço de poder interno pacificado por assumir, como guardião, o anúncio da Igreja Ortodoxa de que a Terceira Roma não cairá, feito quando os turcos submeterem parte do território europeu cristão, perfilando-se assim como guardião confiável da boa ordem. Por tudo, e o mais que pode ser acrescentado, cresce a inquietação sobre se o projeto europeu tem futuro, se os Estados europeus são viáveis sem projeto unitário, se as migrações são uma agressão da solidariedade interna e assim por diante. A questão talvez possa reduzir-se a discutir se o projeto em curso pode ser corrigido ou não terá viabilidade; ou se a multiplicação dos chamados populismos (Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Grã-Bretanha, Grécia, Letónia, Holanda, Eslováquia) vão destruir os valores em que os estadistas fundadores, sem sucessores, quiseram que a solidariedade assegurasse a paz e o desenvolvimento.

Adriano Moreira
DN 15.02.2017