Leituras

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REVISTA DE IMPRENSA 

O Público de sábado e de domingo, o Expresso da semana, textos vários dispersos pela Rede. Leituras de fim-de-semana, tarefa a suportar por quem, apesar do cansaço, pretende permanecer atento. “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. 
Confrontamo-nos com as mistificações de uns, a inteligência penetrante de outros, a verve polémica daquele, o panfletismo deste outro. Razões, paixões e interesses. Análises e armadilhas. Notícias, cenários e projecções. 
Uma a uma, percorremos as inumeráveis estações da profana, demasiado profana, via da nossa quotidianidade. Em vão buscamos a palavra luminosa, a orientação certeira, a justa intenção. Vemo-nos inevitavelmente enredados no labiríntico acervo de factos, opiniões e ilusões. Desesperamos. 
De súbito, aí está. Aí está alguma coisa que a Memória pode, deve, acolher e recolher. Algo de sólido, como só as nuvens o podem ser. Ao encontro do nosso cepticismo, vencendo a nossa reticência, chega-nos, pregada por Tolentino Mendonça, A FÉ DAS ÁRVORES. Que maldição é esta que faz com que o que há em nós de mais verdadeiro ganhe expressão na voz abençoada de outrem? Ciúme e gratidão. 
«Sabemos muito pouco do que se passa à nossa volta. Porventura teremos de reinventar uma gramática que nos arranque da solidão com que atravessamos a vida. (…) Trata-se simplesmente de perceber que, o que é que isso queira dizer, estamos juntos: nós humanos testemunhamos determinadas coisas às outras criaturas e elas fazem-no de igual modo. Por isso não pode permanecer indiferente a esta nossa primavera incerta a mensagem do vegetal sobressalto, do arborescente e inequívoco desejo de durar. 
Nas memórias de Raul Brandão, encontramos este arranque prodigioso, que pode, quem sabe, servir-nos de mapa [um mapa, enfim!]: “Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões… Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto… Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra.”» 
«Confesso que fico dividido a escutar o racionalismo de Fernando Pessoa (pela voz de Alberto Caeiro que diz que “a Natureza não tem dentro, senão não era a Natureza”.) A natureza não tem dentro?» Porque está para sempre connosco o Poeta, Tolentino Mendonça pode suspendê-lo por um momento para deixar as árvores falar-nos. Enfim! Cita agora Ruy Belo: 
“Não sei um dia mas alguma coisa me doía 
Ou talvez não doesse mas havia fosse o que fosse 
Era isso sentia a grande falta de uma árvore.” 
E refere, depois, a cena que, uma vez em Paris, o deixou sem palavras: «A dada altura, junto da Torre de Saint-Jacques, Cesariny sai do carro e corre a abraçar uma árvore. Eu poderia escrever: “corre a abraçar-se a uma árvore, mas creio que não faria justiça ao que me foi dado ver. Era mesmo um abraçar. O mundo fez um silêncio que eu desconhecia.» Naturalmente. Para que as árvores pudessem fazer-se escutar. E o que nos dizem as árvores, nossas irmãs? 
«Hoje encontrei na rua o encenador Jorge Silva Melo, que apontou para um carreiro de árvores flagrantemente primaveris e me disse, meio a sorrir: “Elas acreditam”. Olhei para aquele alinhamento rubro, de entoações e alturas diferentes, e também a mim me pareceu um uníssono rumor. “Elas acreditam”.» 
Diariamente percorremos aquela rua ladeada por dezenas de jacarandás. Todos os anos, por alturas de Março, de um dia para o outro, a rua explode numa sinfonia de tons violeta. Valeu a pena o inverno. É o que nos dizem as árvores, com a sua dádiva generosa. Apetece beijá-las. Mas, não sendo poetas, agradecemos em silêncio e no recolhimento. Deixá-las a elas falar. Da vida, da renovação, da esperança. Elas acreditam. 
Cúmplices, fazem-se esperar este ano. Já vamos a meio de Abril, não pode faltar muito. Também nós acreditamos.

Luís Gottschalk