A aflição europeia

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A minha geração, e a mais nova, estão muito habituadas a viverem “na Europa”; não se lembram das imensas dificuldades e incertezas de quando ela não existia ou de quando Portugal lhe estava à porta.

Houve um tempo em que a UE fazia parte da solução. Para os países ricos do norte e para os países pobres do sul (de adesão mais recente), a União Europeia era o caminho – para que os ricos continuassem a liderar o mundo e os pobres beneficiassem da convergência que melhoraria as suas vidas. Mas desde há uns anos, com a burocratização das instituições comunitárias, com a crise das dívidas soberanas e com o assalto dos populismos e terrorismos, parece que a UE passou a fazer parte do problema. Os mais críticos dirão até que a UE é o problema – e que as lideranças europeias são a encarnação disso mesmo.

Em 2016, o eurocepticismo transformou vários actos eleitorais em testes à ideia do projecto europeu. E muitas eleições aprazadas para este ano de 2017 seguirão tal senda. Cada derrota do sistema foi saudada pelas franjas euro cépticas; e a cada vitória magra deste, deu-se um suspiro de alívio. Não sou tão euro entusiasta quanto outros, porque não posso ver sem reserva a forma como a União se vai fechando e entregando poderes e soberanias a entidades (como o todo-poderoso Eurogrupo) não fiscalizáveis pela democracia ou pelo voto. Mas reconheço facilmente que a construção europeia foi um dos maiores projectos políticos e de relações internacionais da segunda metade do século XX, dando ao velho continente décadas de paz e prosperidade. Talvez o problema seja de memória.

A minha geração, e a mais nova, estão muito habituadas a viverem “na Europa”; não se lembram das imensas dificuldades e incertezas de quando ela não existia ou de quando Portugal lhe estava à porta. E da mesma maneira que só apreciamos a saúde quando estamos doentes, corremos bem o risco de só apreciar a Europa se, ou quando, já não a tivermos.

Em 2016, a UE tremeu a cada eleição. Trata-se de uma situação abstrusa, porque é ilógico que as democracias temam o mecanismo de base que as funda, justifica e alimenta. E tudo foi pior no caso dos referendos – que os próprios governos transformaram em plebiscitos, e que serviram de pasto fácil às demagogias e aos populismos. A imprudência de David Cameron, em luta doméstica contra o UKIP, atirou o Reino Unido para fora da UE. Depois, a precipitação de Matteo Renzi (propondo uma revisão constitucional destinada a blindar o executivo), atirou a Itália para a incerteza.

De governo em governo, e se estes durarem até às eleições de 2018, Beppe Grillo vai ficando mais perto do Palazzo Chigi. Na Áustria, Norbert Hofer quase conseguiu a Presidência para uma ultra direita pouco europeísta e muito nacionalista – o que não pouco assustaria Bruxelas. Finalmente, o fracasso de François Hollande (depois de um mandato castigado pelo terrorismo), levou-o a desistir da recandidatura ao Eliseu, um abandono que François Fillon ou Benoît Hamon tentarão preencher este ano, mas que, por ora, só traz contente Marine le Pen. Como esperançado anda Geert Wilders, que vai em breve a eleições na Holanda.

Por toda a parte, líderes democráticos europeus arriscaram demais, chantagearam eleitorados (ou não os compreenderam), amuaram e foram embora, ou desistiram. A hora não está fácil para políticos euro entusiastas que sejam em simultâneo democratas, carismáticos e populares. E nunca a Europa precisou tanto deles. Sobretudo neste ano de 2017, quando demagogos de toda a espécie espreitam a cada esquina, e quando o velho mundo vai ficar mais sozinho perante a anunciada deserção isolacionista dos EUA de Trump ou uma possível pressão imperialista de Putin – dois dos grandes, senão mesmo os maiores, euro críticos com mais poder.

José Miguel Sardica