A democracia do nosso descontentamento

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Carcomida pela corrupção e pelo clientelismo, a democracia vai-se degradando e dando lugar a subprodutos políticos condutores das famosas medidas de exceção especializadas em enterrar a própria democracia.

A nossa democracia está estabilizada, na medida em que as instituições que lhe dão corpo e a sustentam e defendem trabalham, muitas vezes nos mínimos, mas funcionam.

Cumpre-se o ritual do calendário eleitoral, que formaliza a necessária legitimidade dos representantes eleitos e dos órgãos executivos, mantêm-se os direitos e os valores universalmente considerados fundamentais para a dignificação do ser humano, mesmo que cada vez mais limitados e pendentes das superiores razões do Estado.

Privilegia-se, mesmo que em tese para debate em antena, a controvérsia, estimulando a cidadania, como elemento de consciência solidária e exercício ativo na gestão da vida em comunidade.

Investe-se cada vez mais na cenarização e na produção da política-espetáculo, confundindo a generalidade dos cidadãos sobre o essencial e o acessório, sobre o pensar por si próprio, investindo na procura de informação alternativa, ou optar, sem grau de exigência ou esforço adicional, pela propaganda pronta a consumir, oferecida pelos proprietários que controlam os meios.

Tudo funciona, mesmo que na prática, em condições previamente viciadas, só as famílias políticas dos poderosos de influência e ricos em meios possam ir a jogo num sistema político que vão desenhando e condicionando, de acordo com os seus interesses e os das corporações que representam e a que dão corpo.

A isto dão o nome de democracia. Pode ainda ser, mas é de má qualidade.

Carcomida pela corrupção e pelo clientelismo, pela injustiça social, por manifestações de autoritarismo securitário, pela presença insaciável de um espetro financeiro destruidor e pela redução do nível cultural e exigência ética dos agentes políticos eleitos, a democracia vai-se degradando e dando lugar a subprodutos políticos condutores das famosas medidas de exceção especializadas em enterrar a própria democracia.

A defesa e a manutenção da democracia, a níveis de resposta que correspondam aos desafios civilizacionais que nos toca viver, implicam muito mais que um homem providencial ou uma retórica populista.

Obrigam ao envolvimento de todo um povo mobilizado e consciente de que toda a democracia que não assenta sobre uma cidadania educada e conhecedora dos seus direitos será de má qualidade e, no fim, nem democracia será.

Hoje, a generalidade dos cidadãos sente uma espécie de impotência democrática que desliza até à perigosa indiferença perante a ideia, de um sentimento muito divulgado, de que estamos perante uma crise de representação política. São muitos os que inclusive consideram que o próprio processo de globalização debilitou as democracias.

É um estado de ânimo revelador de que para os cidadãos, a política e, portanto, as instituições representativas perderam, para além da confiança, a sua capacidade transformadora, e os principais atores de uma democracia, os partidos políticos, parecem já não representar o sentir maioritário da população.

Este estado de ânimo abre portas a todo o tipo de deserções por desinteresse da responsabilidade cidadã individual, a receios do futuro, demagogias salvadoras e movimentos de mal disfarçada tendência antidemocrática.

Os desvios e os perigos que ameaçam a democracia só serão vencidos e eliminados, não por um dirigente ou partido redentor, mas sim por uma sociedade plural e forte, consciente dos seus direitos.

Consciente de que centenas de anos de sacrifícios, lutas, resistência, heroísmo e movimentos coletivos de progresso não podem ser vencidos e abandonados ao medo, ao pessimismo ou à barbárie.

Consciente de que em circunstância alguma, e sob qualquer pretexto, se podem entregar ou deixar cair as bandeiras da liberdade, da justiça social e dos direitos humanos, pilares fundamentais e estruturantes de uma verdadeira democracia.

Artur Pereira
Consultor de comunicação

Jornal i