A desvalorização do trabalho

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“A desvalorização do trabalho é hoje um sério desafio às nossas sociedades, que o devem resolver em democracia.”

O peso dos salários no PIB desceu em Portugal com o ajustamento imposto pela “troika”. Depois recuperou um pouco, mas a tendência, no nosso país e em quase todo o mundo industrializado, é clara: o rendimento dos trabalhadores perde terreno, nomeadamente face aos rendimentos do capital. E há crescentes desigualdades de vencimentos. Nos 50 países analisados pelo FMI, no seu recente World Economic Outlook, entre 1995 e 2009 o peso dos salários dos trabalhadores com baixas e médias qualificações caíram mais de 7%, tendo havido aumentos superiores a 5% da massa salarial dos mais qualificados.

Segundo o FMI, este fenómeno ter-se-á iniciado no final dos anos 80 nas economias desenvolvidas, enquanto nas economias emergentes se regista a partir do final da década seguinte. Mas desde 2008 observam-se sinais de estabilização ou ligeira inversão, tendo o peso dos rendimentos do trabalho subido em alguns países. Veremos se a inversão se confirma.

O fisco, em proporção, cobra mais ao trabalho do que ao capital. Citando o economista Nouriel Roubini, “a única maneira sensata de proporcionar um alívio fiscal aos trabalhadores de rendimento médio e baixo é aumentar os impostos sobre os ricos. Esta é uma ideia populista socialmente progressista que um plutocrata pseudo-populista como Trump nunca aceitará”.

A globalização tem as costas largas

Nos países ricos, como os EUA, culpou-se a globalização por este retrocesso civilizacional. É verdade, mas só em parte – além de esquecer as centenas de milhões de pessoas que a globalização tirou da pobreza, na China, Índia, etc. Os baixos salários de grandes países exportadores, como a China, afectaram a mão-de-obra pouco qualificada dos países desenvolvidos, sobretudo na indústria transformadora. E levaram a numerosas deslocalizações de empresas para países de salários baixos, gerando desemprego.

Desemprego que está a níveis elevados em muitos países, em particular na Europa. Deve contrapor-se, todavia, que se deu uma entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho para tarefas razoavelmente bem pagas. Em países pobres como Portugal as mulheres das classes baixas sempre trabalharam, por necessidade. A criação de empregos que recentemente se tem verificado entre nós está muito ligada ao “boom” do turismo e envolve sobretudo tarefas pouco qualificadas e mal pagas.

Em Portugal assistimos a deslocalizações, sobretudo no sector têxtil, depois de a China ter entrado para a Organização Mundial do Comércio, fazendo cair o proteccionista Acordo Multifibras. Na sua maioria, o sector não estava preparado para algo que se sabia ir acontecer, com datas e tudo.

Entretanto, os salários têm subido na China e já acontecem deslocalizações do território chinês para países de salários baixíssimos, como o Vietname.

A tecnologia contra o emprego

Mais importante para a estagnação, ou quase, dos salários nos países desenvolvidos é a evolução tecnológica. A automação, os robôs, a inteligência artificial, etc. ameaçam muitos empregos. E proporcionam salários elevados a quem está familiarizado com as novas tecnologias, enquanto os rendimentos dos “info-excluídos” não progridem.

A introdução de máquinas também tirou trabalho a muitos operários nas primeiras décadas da revolução industrial, há dois séculos. Mas, a prazo, criou muitos mais postos de trabalho do que aqueles que destruiu. E as máquinas diminuíram o esforço físico e a penosidade de inúmeras tarefas. Será que agora se repetirá o fenómeno?

Há quem argumente que os progressos tecnológicos actuais já criaram milhares de empregos novos. É o caso de Walter Isaacson, que foi amigo, colaborador e biógrafo de Steve Jobs. Mas não faltam previsões catastróficas sobre destruição de empregos pela automação nas próximas décadas. Uma coisa parece certa: as desigualdades aumentam, com os que estão à vontade nas novas tecnologias a ganharem muito e os outros a estagnarem.

Será que a automação irá permitir encurtar o tempo de trabalho? Talvez, mas o que se passou até hoje não é animador. Houve alguma redução do tempo de trabalho, mas moderada. Há quem trabalhe demasiadas horas – porque o salário não chega e precisa de um segundo emprego; ou por ambição profissional, envolvendo gente que aufere altos vencimentos, mas vive para o trabalho, sacrificando tudo o resto.

Mudança na organização produtiva

A organização produtiva mudou. Acabaram as grandes linhas de montagem, a produção em massa e as empresas geridas à maneira militar. O trabalho é mais flexível, reunindo em cadeia contributos de várias unidades de produção de bens e serviços. Este é um dos factores que explica a quebra de filiados em sindicatos: o recrutamento torna-se mais difícil.

Por exemplo, em Portugal a taxa de sindicalização baixou de 61% dos trabalhadores em 1978 para menos de 20% hoje. Sindicatos mais fracos defendem pior os trabalhadores, naturalmente. Muitos dos direitos de que estes hoje gozam ficaram a dever-se a anteriores lutas sindicais, por vezes duras.

E temos, ainda, a precarização do trabalho. Em Portugal, mais de metade dos trabalhadores entre os 15 e os 29 anos tem contratos temporários. Só a Espanha e a Polónia nos ultrapassam. A média europeia é de um terço.

Além de ser a forma normal de ganhar a vida, o trabalho é um factor essencial de realização das pessoas. Embora ele ainda seja penoso para muita gente.

A desvalorização do trabalho representa um sério desafio às nossas sociedades. Como revalorizar o trabalho sem sacrificar a produtividade? Como toda a gente, o FMI aposta na educação e na melhoria das qualificações da força de trabalho, o que é particularmente importante em Portugal. Mas não chega.

Tempos atrás, havia uma resposta simples: liquida-se o capitalismo e adopta-se um regime comunista. Ora, viu-se que o colectivismo não trouxe liberdade nem melhorou substancialmente o nível de vida das pessoas a ele submetidas. Há que procurar outras soluções, que não sejam piores do que os males existentes.

Francisco Sarsfield Cabral