A pós-verdade não é nada

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Os políticos não mentem porque são necessariamente perversos. Alguns serão, mas não todos. Os políticos mentem porque a mentira se tornou numa ferramenta fundamental do exercício da política. Mesmo com as melhores intenções. E sobretudo com elas.

Guy Debord, hoje muito apreciado por aqueles que em vida mais o odiaram, foi dos primeiros a descrever um mundo assente na mentira generalizada. Chamou-lhe “A sociedade do espetáculo” na linha do seu interesse pelo cinema.

A mentira tornou-se norma na política, nos media e na publicidade. Mas também nas vidas correntes onde cada um, a cada momento, joga o papel mais conveniente e vantajoso. As redes sociais, onde se exageram as qualidades e se disfarçam os defeitos, só vieram confirmar o que já se sabia. A mentira é fácil e simples, enquanto a verdade é complexa e aborrecida.

Pode ser uma mentira rotunda, uma meia-verdade, uma forma rebuscada de descrever factos. No jornalismo a mentira assenta no próprio meio, nessa inevitável parcialidade dos relatos e das perspetivas. Quem já viveu um evento que depois viu relatado na televisão ou jornal apercebeu-se do desfasamento entre o sucedido e o descrito. Isto para não falar da ignorância, incompetência ou mesmo manipulação que abundam. Esta semana, numa reportagem sobre um acidente de comboio na Índia, a jornalista falou de 23 milhões de passageiros por ano. Queria transmitir a ideia de que era muita gente, muitos comboios. O número chocou-me. Não sem razão. São de facto 23 milhões, mas por dia. E, nem são muitos, numa população de 1.225 milhões.

Na política, a mentira distorce a perceção da realidade social. Transforma uma boa iniciativa política num desastre que gera pânico e uma péssima medida na salvação do povo. Cria medo e falsas expetativas. Nas sociedades ocidentais, os demagogos, mentirosos crónicos, culpabilizam os emigrantes pelas dificuldades enquanto prometem que a sua expulsão vai criar empregos e riqueza. A realidade é precisamente o oposto. É o trabalho dos emigrantes que tem permitido a riqueza das sociedades ocidentais.

Já sabemos tudo isto mas, agora, surgiu uma nova explicação que é em si mesmo uma falsidade. Refiro a nova palavra do momento: a pós-verdade. Muita gente se agarrou a ela como forma de explicar tudo e o seu contrário. A pós-verdade seria, por exemplo, o que levou ao Brexit e a Trump.

Ora a pós-verdade não é mais do que a velha mentira usada e abusada pelos políticos. Diz-se que é diferente porque se coloca para lá dos factos. Repete vezes sem conta uma comprovada falsidade porque o assunto não é esse, mas sim ganhar emocionalmente a confiança dos eleitores.

Tenho dificuldade em ver qualquer distinção entre o “read my lips” de Bush pai, quando ganhou as eleições porque prometeu não aumentar impostos e aumentou, e as diárias mentiras proferidas por Trump ou pelos defensores do Brexit. Afirmar que o dinheiro entregue à Europa pelo Reino Unido serviria para melhorar o sistema nacional de saúde não é pós-verdade nenhuma. É uma rotunda mentira como hoje já muitos britânicos perceberam. Desde logo porque a Grã-Bretanha nunca entregou esse dinheiro à Europa.

Sejamos claros. Os políticos não mentem porque são necessariamente perversos. Alguns serão, mas não todos. Os políticos mentem porque a mentira se tornou numa ferramenta fundamental do exercício da política. Mesmo com as melhores intenções. E sobretudo com elas.

Ao se transformar num espetáculo, a política vive hoje do mesmo efeito de “suspensão da descrença” que assiste ao mecanismo cinematográfico. Os eleitores são levados a acreditar em tudo. E até choram e riem.

A pós-verdade não é mais do que uso consciente e elaborado da mentira como forma de atingir objetivos políticos.

Leonel Moura
Artista Plástico