Afinal, é bom ou não viver em Portugal?

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Dizemos mal do nosso país, criticamos tudo e todos e nada nos satisfaz. Não há consensos porque ou somos pró ou somos contra. Parece que os Descobrimentos ou o golo do Eder são os únicos fatores de unidade nacional e a única riqueza do país.

Há um certo contrassenso no que se refere ao que dizemos do nosso país. Ouvem–se pessoas a dizer que “pior do que isto só na Grécia”, outros “que nem na Grécia”, ou ainda “quem me dera fugir daqui”. Por outro lado, para lá da procura do país por turistas e migrantes de outros países, muitos indicadores revelam que o país se situa entre os melhores em diversos setores, além da já tão famosa quanto extraordinária taxa de mortalidade materna ou infantil. Mais: mesmo face a problemas identificados, como o consumo de tabaco, álcool ou drogas ilegais e legais, como ainda foi há dias divulgado na comunicação social a partir de estudos efetuados pelo SICAD e pelo CNE, há uma capacidade de desenhar soluções e de tentar melhorar o que de mal se passa, mesmo que algumas coisas ainda estejam dependentes das vontades e quezílias políticas e da (in)sensibilidade social de alguns governantes, ou esbarrem com a “burrocracia” de algumas instituições.

Portugal assistiu, em várias épocas, a vagas de emigração sucessivas (muito intensa no final do século xix, mas já antes, para as então colónias, e enorme nos anos 60 do século xx), alternando com algumas de imigração – há escassos sete anos, um sexto das crianças que nasciam em Portugal eram filhas de estrangeiros imigrados. O nosso país sempre foi, ao longo da história, um local de transumância, de chegada e de partida, e por aqui passaram fenícios, árabes, lusitanos, visigodos, romanos, celtas, africanos, sul-americanos, norte-europeus… eu sei lá! Uns chegaram, outros partiram, o que só nos fez bem em termos de mistura genética e de complementaridade cultural. Esta riqueza, infelizmente, é muito pouco louvada em comparação com as desgraças financeiras ou os “buracos” dos bancos, talvez por não estar cotada na bolsa nem nos valores dos senhores Trump ou Orbán.

Volto à questão: gostamos ou não de viver em Portugal? Ou, dito de outra forma, tendo em conta os mais de 200 países do mundo, gostamos ou não de estar aqui? Preferimos ou não viver aqui? Em quantos países nos sentiríamos melhor?

Embora nos irritemos com múltiplas coisas “da nossa terrinha”, e até nos indignemos (especialmente alguns jornalistas e opinadores políticos que gostam de ver as coisas de um modo muito superficial) quando, em rankings que não expressam nada e são muito duvidosos em termos metodológicos e epidemiológicos, pioramos um lugarzinho num simples ano (sem valor epidemiológico que permita retirar alguma conclusão), o certo é que o nosso país, em comparação com muitos outros – com a maioria – continua muito acima da linha de água, e a vida que temos é uma vida de conforto, de afluência, de opções variadas e de liberdade, pelo menos para a esmagadora maioria dos portugueses – até para criticar, dizer mal, opinar. Basta ver os indicadores de há alguns anos e décadas, e constata-se o enorme avanço civilizacional que o nosso país teve, em praticamente todos os níveis. Infelizmente, a memória é curta e do que nos lembramos é do que aconteceu ontem ou anteontem… tudo o resto fica no “pó esquecido da memória”, exceto se for para atribuir as culpas a este ou àquele primeiro-ministro. Alguém se recorda das epidemias de sarampo que, em 1989 e 1994, mataram dezenas e dezenas de crianças? E que o sarampo foi considerado “controlado e extinto” no nosso país, enquanto noutros da UE, como a Alemanha ou a França, está ativo e mata? O que era a escola há dez ou 20 anos? Melhor? Não creio.

Mesmo que alguns portugueses (um só que seja já é demais) passem dificuldades diárias e outros tenham visto o seu poder de compra reduzir-se – em parte devido às políticas erradas, gananciosas, austeritárias, e às “receitas” venenosas das entidades internacionais, ou, noutros casos, ao mau rumo que deram à sua vida e à ideia de que se poderia ter “tudo já”, e esse tudo baseado em questões materiais –, há neste momento conhecimentos que permitem mudar estilos de vida, opções lúdicas, e conseguir cultura, desporto, lazer, diversão e felicidade a custo zero… além do facto de vivermos em liberdade e numa democracia evoluída, e com padrões de segurança invejáveis (e não me refiro apenas à ameaça do Daesh), o que não é propriamente um facto de segunda. Quando, há dias, um sírio rejubilava por poder, finalmente, cortar a barba sem ser condenado à morte, pensei que há regiões do planeta – e muitas – dos quais estamos, em termos de parâmetros civilizacionais, a anos-luz, e perante coisas como estas, como as imagens que nos chegam de Alepo, deveríamos ter um bocadinho mais de recato e cairmos em nós, não para sentirmos remorsos ou culpa de vivermos aqui, mas para valorizarmos a nossa existência… aqui.

Quando nos dirigimos aos mais jovens temos uma linguagem descolorida em relação a Portugal e passamos a mensagem de descrédito no país onde eles vão, salvo exceções muito raras, viver. Isso é mau. Muito mau. Porque os nossos filhos são privilegiados por fazerem parte dos dez por cento mais ricos do mundo, por viverem num país onde há liberdade e há opções variadas. Quando um estudo recente (fundamentado em perguntas abstratas e de futurologia) revela que quatro em cada cinco jovens deseja emigrar, constata-se o fenómeno, mas raramente se vê um cronista ou um político a dizer: “Não! Estão enganados! O nosso país é bom e tem muito para oferecer!” O que se observa é o vir ao de cima do fadinho mais pungente, e quase que se oferecem bilhetes-só-de-ida para que eles cumpram esse seu sonho que, na maioria dos casos, não passa de uma fantasia pouco sólida e nada objetiva – viver em Paris não é fazer turismo em Paris, viver em Londres não é ter um excelente apartamento ao lado da Abadia de Westminster! É tudo bem mais difícil, trabalhoso, e nesses países só se admitem os que realmente são bons… não escamoteemos essa parte da questão.

Para alguns adultos, os governos (todos eles!) fazem mal “porque sim”, mas também “porque não”. As câmaras municipais são acusadas de fazerem obras, mas também condenadas se não as fizerem. Nada é objeto de concórdia ou de razoabilidade… a não ser o golo do Eder! De vez em quando, a família senta-se junta com cachecóis, bandeiras, gritos, berros e cerveja, urrando pela seleção nacional. Nada contra. Pena é que não se vejam mais manifestações de contentamento por tudo o que existe de bom, ou que a equipa das quinas, inclusivamente, por perder um jogo, passe a ser um conjunto de “gajos que nem sabem dar um pontapé na bola”.

Será que temos de ser assim? É este o nosso destino, o nosso fado? Não acredito. Mas se continuarmos presos à nostalgia dos Descobrimentos (o que haveria a dizer sobre esses tempos, esses desígnios!), num bota-abaixismo constante, citando Eça a torto e a direito, descrentes, deixando de votar, de optar, de escolher, dizendo que “são todos iguais” (leia-se, ladrões e corruptos), então sim, então Portugal poderá vir a passar tempos de desesperança e de retrocesso.

A nossa crise, para lá da económica e financeira, é uma crise de autoestima, de autoconfiança e de autoimagem. Podemos gostar da geringonça ou da caranguejola, do partido A ou do líder B, mas do que estamos mesmo a precisar, enquanto povo, é de uma psicoterapia urgente. Acresce que, infelizmente, os meios de comunicação, em muitos casos, limitam–se apenas a martelar mais uns pregos no caixão, sacrificando tantas vezes a verdade em prol de títulos histriónicos de “primeira página”.

Mário Cordeiro
Pediatra

Jornal i 04.10.2016