“Alma Grande” A crónica do convidado MARIA DO ROSÁRIO GAMA “Não é fácil envelhecer!”

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Rosário Gama

A presidente da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!) escreve sobre o impacto da pandemia entre as pessoas mais velhas e lamenta a segregação de que estão a ser alvo a pretexto do vírus
«Já devíamos estar habi­tuados a este caminho que começamos a percorrer ainda antes do nascimento! À pressa que temos em ter mais idade quando somos jovens, segue-se, por contraste, o desejo de que o tempo não passe tão depressa quando o vemos a passar cada vez mais rápido. Raramente pensei no que seria ser velha quando estava na vida activa, cheia de sonhos e de projectos e com muita energia para os concretizar.
Mas chegou a idade de “sair de cena” e de colocar um ponto final na actividade profissional até então desenvolvida. Foram significativos os efeitos dessa mudança nas relações sociais: a percepção de que os outros passam a olhar-nos de modo diferente, avaliando-nos de outra maneira, a tendência para uma desvalorização social baseada na imagem até então construída, com base no reconhecimento profissional… Os efeitos psicológicos não são menores: progressivamente, amigos e colegas vão partindo, os filhos casam-se e seguem a sua vida, os núcleos familiares refazem-se, tem-se a sensação de uma progressiva solidão familiar e social, que se vai instalando, a par de um futuro cada vez mais exíguo… Há ainda os efeitos na saúde: manifestam-se as progressivas debilidades fisiológicas que diminuem o bem-estar pessoal, surgem os constrangimentos físicos que nos fazem ter consciência aguda dos nossos limites… Estas sensações são muito significativas (e variáveis nos seus efeitos) em cada projecto de vida, mesmo quando ainda nos sentimos saudáveis e apesar de termos a noção do aumento da esperança média de vida.
Foi posta em causa a autodeterminação dos mais velhos, como se não tivessem capacidade de se proteger e de proteger os outros
A minha geração foi uma geração corajosa que viveu e lutou contra a ditadura e a guerra colonial, que a contestou com risco de vida, combatendo ou desertando, que lutou nas universidades, nos campos, nas fábricas, que contribuiu com essas lutas para a revolução de Abril. Hoje, apanhados de surpresa pela “onda gigante” que se abateu sobre nós, sobre as nossas famílias, sobre o país, sobre o mundo, vemo-nos confrontados com um inimigo sem rosto que alterou profundamente o nosso modo de viver. De um momento para o outro, fomos chamados a reaprender tudo o que pensávamos já ter aprendido e a rever os nossos conceitos de comunicação, de solidariedade, de partilha e de confiança. A vulnerabilidade associada à idade constituiu argumento para discursos segregadores e práticas discriminatórias, tendo mesmo sido anunciado um possível confinamento até à existência de uma vacina que permitisse um regresso a uma pretensa normalidade. Este preconceito contra a idade — idadismo —, apesar de não ter evoluído para medidas concretas, causou efeitos psicológicos difíceis de ultrapassar. Foi posta em causa a capacidade de autodeterminação das pessoas mais velhas, como se elas, autónomas e conscientes, não tivessem capacidade de se proteger e de proteger os outros. Assim, é de saudar a reabertura faseada dos centros de dia, a iniciar-se neste sábado, dia 15 de agosto, com a segurança necessária, para que não tenhamos de assistir a relatos como os que têm sido divulgados sobre lares, em que surtos epidémicos com alguma gravidade causaram um número significativo de contaminações e de óbitos, quer entre os residentes quer entre as/os profissionais que ali trabalham.
O confinamento sem fim à vista é o caminho mais curto para a demência ou para uma sentença de morte antecipada
O caso mais paradigmático é o de Reguengos de Monsaraz, onde a falta de cuidados oportunos, cuja responsabilidade está em investigação, terá provocado a morte de pessoas idosas, não pela covid-19 mas por causas atribuídas ao abandono a que foram sujeitas. Apenas 2% do universo total de lares foi notícia, devido à facilidade de propagação do vírus e suas consequências.
Contudo, tem sido dada pouca atenção aos utentes da generalidade dos lares, que, desde o início de Março, se encontram em regime de “prisão domiciliária”, impedidos de sair para um passeio ou um qualquer encontro, no uso da sua autonomia e de todas as suas capacidades. Um tal confinamento contribuiu para um agravamento da sua saúde mental e da sua própria segurança, uma vez que a redução forçada da sua mobilidade aumenta o risco de acidentes. Esse “resguardo” a que estão sujeitos não lhes permite sequer a proximidade física com familiares, muito menos “as mãos entre as mãos” ou o abraço calmante das angústias que os atormentam. A perspetiva dum período de quarentena para alguém que persista em sair, por manifesta vontade ou por vontade dos familiares, é desmotivadora.
Ao não se vislumbrar o fim da pandemia no curto prazo, continuaremos a manter esta “prisão”, com todas as consequências físicas, psicológicas e cognitivas que já se fazem sentir? O confinamento sem fim à vista e sem medidas complementares não é solução, muito pelo contrário, é o caminho mais curto para a demência senil ou para uma sentença de morte antecipada para idosos que hoje têm autonomia. Ele configura um grave atentado aos Direitos Humanos, consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa, se não forem encontradas soluções alternativas que conjuguem a proteção sanitária com a liberdade de comunicar e de conviver. Este quadro de angústia e de incerteza exige uma profunda reflexão sobre o que se passou de menos positivo, para se retirarem daí as melhores soluções para o futuro. Vamos, em primeiro lugar, evitar discursos estigmatizantes sobre as pessoas mais velhas em geral e, sem deixar de cuidar delas devidamente, seguindo as normas sanitárias recomendadas pela DGS, não repetir práticas de isolamento e de confinamento desnecessárias e traumatizantes que só podem provocar o pânico e a instabilidade emocional. Para isso, é necessário preparar estratégias eficientes, em diálogo com os dirigentes ou representantes das instituições, para as proteger dos contágios com origem no exterior e que ali se podem multiplicar. Os hospitais de retaguarda ou unidades de cuidados continuados integrados devem receber as pessoas infectadas, mesmo não tendo sintomas graves. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem de ser reforçado em meios humanos, técnicos e financeiros, de modo a que, em todas as suas valências, se articule eficientemente com as unidades de acolhimento de pessoas idosas. As respostas da Segurança Social têm de ter o devido suporte financeiro da parte do Orçamento do Estado e dos fundos europeus, para que pandemias ou emergência sociais futuras, sanitárias ou outras, não coloquem em causa a sua sustentabilidade.
Perante a liberdade que nos foi retirada, não abdicamos de ser mulheres e homens livres! Continuaremos a lutar por melhores condições de vida para as pessoas idosas!»

Maria do Rosário Gama escreve de acordo com a antiga ortografia

Expresso – 15.08.2020