Belo: livres morreram. Continuamos

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Ontem o atentado em França, nos meses recentes os repórteres decapitados no Iraque, nos anos recentes os jornalistas mortos na Rússia de Putin, antes disso mil outros casos que os “Jornalistas sem Fronteiras” todos os anos publicam. O relatório de 2014 assinalava 66 assassinados, 119 sequestrados, 178 presos, 853 detidos, 1846 ameaçados ou agredidos e 134 que precisaram de se exilar. África, América Latina ou países árabes são as zonas mais críticas. Mas sejamos lúcidos: um pouco por todo o lado – incluindo a Europa e países ricos – os jornalistas vivem estrangulados economicamente ou perdem o emprego. Porque a liberdade de Imprensa, e de uma forma mais vasta a liberdade de expressão, é uma poderosa força que faz com que a caneta de um caricaturista possa ser mais forte do que as kalashnikovs. Morreram quatro jornalistas/caricaturistas no “Charlie Hebdo” mas não há armas que matem todos os caricaturistas, todos os jornalistas ou pessoas que se arriscam a expor um padrão de liberdade e eventualmente a morrer por ele. Ontem foi um dia tristíssimo e simultaneamente um dia belíssimo.

Sou amigo de muitos humoristas portugueses do jornal satírico “Inimigo Público”, do premiadíssimo caricaturista António Jorge Gonçalves ou dos guionistas que escreviam o extinto Contra-Informação da RTP. Alguns deles ainda trabalham no limiar da dignidade, outros deambulam por outras artes porque o humor não lhes dá de comer. Cada vez mais o poder económico e político se afronta com esta ousadia. Cada vez mais se cortam os meios. Cada vez mais os anunciantes temem o que não controlam e eliminam publicações que “desafinem”.

O problema dos humoristas, jornalistas ou escritores começa sempre no mesmo sítio: a fraqueza dos leitores, no desapego geral à liberdade dando por adquirido que alguém fará o trabalho de denúncia e que isso, por si só, resolve alguma coisa. Mas não resolve nada. Ainda por cima os leitores instalaram-se no “grátis” da net, não assinam sequer um jornal digital nem o compram em papel. As publicações vão morrendo sob o coro de vagos lamentos. Por fim, os diretores de marketing escolhem cada vez mais meios inofensivos e controlam/institucionalizam uma sociedade entediante, asséptica e que tenta usar a Imprensa (jornais, rádios, televisões) para fins económicos laterais. Isto mata-nos um pouco todos os dias.

Em França os terroristas quiseram vingar um profeta. Dizia o “Charlie Hebdo”, citando Maomé: “É difícil ser amado por idiotas”. Olha-se para a brutal incompreensão na mítica Palestina ou para o recente atentado no Paquistão que vitimou 140 crianças e percebe-se como não adianta continuar a matar pessoas a eito, sejam jornalistas, alunos, raparigas a tentarem obter direitos iguais… O desejo de liberdade e conhecimento atravessa milhões como doença contagiosa que não consegue ser combatida aos tiros.

Ainda assim, o medo vai fazendo o seu caminho e não podemos dormir sobre a liberdade como algo adquirido. E isso passa por ter noção da missão: os jornalistas estão disponíveis para pagar, no limite, com a sua vida, a coragem de publicar uma reportagem contra um ditador, um cartel de tráfico ou sobre uma religião que não admite a liberdade à crítica. Preferiam, no entanto, serem valorizados em vida e não apenas nos funerais.

DANIEL DEUSDADO
Excerto opinião JN 08.01.2015