Celebremos a vida

7
O elogio do sofrimento evoca memórias sinistras na história da Europa e do nosso país. Psicólogos e psiquiatras observam que, em regra, esse elogio surge associado a estados muito doentios, a uma “pulsão de morte”.

Passos, Portas e C.ª vão celebrar este fim de semana o “êxito” das suas políticas de aplicação do memorando, assinado com a troika há quatro anos, e “festejar a saída” daquela entidade como se o seu espírito demoníaco não estivesse bem presente e a marcar pontos.

Portugal viveu quatro anos de desajustamentos e a esmagadora maioria da população foi sujeita a sofrimentos inúteis. As fragilidades detetadas na economia, na sociedade e na organização e funcionamento da sua vida coletiva não foram resolvidos; no geral agravaram-se. A continuação das políticas de austeridade, que o Governo e as instâncias europeias nos encomendam, visam subjugar-nos à inevitabilidade do sofrimento como destino, para com ele expiarmos as culpas de sermos povo do sul da Europa e de termos aspirado a um futuro melhor. Para os donos do clube do euro, se aí quisermos estar terá de ser na condição de membros de segunda; se quisermos sair esperam-nos todos os castigos do deus-mercado.

Uma séria avaliação das políticas do memorando evidencia que os seus resultados foram desastrosos face aos objetivos enunciados e que em áreas onde os objetivos não estavam identificados os desastres foram ainda maiores, provocando efeitos recessivos atrofiadores do futuro. Entretanto, temos “cidadãos gold” e o empreendedorismo tipo Dias Loureiro passou de envergonhado a modelo.

Disseram-nos que em 2014: o PIB estaria apenas 0,4% abaixo do nível de 2010, mas o resultado foi uma queda de 5,5%; o emprego só diminuiria 1,1%, mas a descida foi de 7,1% e associou-se-lhe a degradação da sua qualidade e o aumento do desemprego; a dívida, que segundo as previsões da troika e do Governo devia situar-se no final de 2014 em 115% do PIB, atingiu aí os 129%; a estabilização do setor financeiro foi e é uma miragem, de tal forma que em 2014 assistimos à falência de um dos maiores bancos, o BES.

O Governo tem propagandeado um “seguro crescimento económico” nos últimos trimestres, exatamente o mesmo período em que se observa agravamento do desemprego, o que significa estarmos longe de um crescimento gerador de mais emprego. Sobre a consolidação orçamental, de que Passos e C.ª se vangloriam, a Comissão Europeia veio dizer, na última semana, que nada está seguro e que mais austeridade é precisa.

No plano das consequências sociais e políticas, escamoteadas no fundamental pelo memorando, surgem agora bem claros os prejuízos: a isto, hipocritamente, Passos Coelho chama “modernização” da sociedade portuguesa. Aumentaram a pobreza e as desigualdades. Em diversas áreas o Governo e a UE querem transformar programas assistenciais de emergência em programas políticos estruturais, vinculando “definitivamente” os pobres à pobreza, e reduzindo a esta condição centenas de milhares de portugueses que pertenciam a classes médias.

O esvaziamento da contratação coletiva, a redução de pensões de reforma, a desvalorização salarial, as alterações à legislação laboral, a ofensiva contra os direitos do trabalho – depreciativamente catalogados de privilégios – proporcionaram uma enorme transferência de rendimentos do trabalho para o capital e puseram em marcha uma dinâmica de mobilidade laboral e social descendentes. Também a estes retrocessos Passos Coelho chama modernidade.

Num quadro destes, quando acontecer crescimento económico a sério teremos, sem dúvida, mais riqueza mas para uma nova forma de distribuição, em que os detentores do capital receberão uma fatia bem mais gorda do que recebiam em 2010.

A celebração da vida de que precisamos não é a da submissão a estas injustiças e ao escuro das “inevitabilidades” que as sustentam. Tal como a natureza se transforma e renasce a cada ano, também nós portugueses seremos capazes de uma transformação libertadora, gerando esperança e energias que nos levem a correr os riscos necessários para garantir trabalho digno, direitos sociais fundamentais e uma sociedade democrática.

Carvalho da Silva
Opinião JN 17.05.2015