‘Ceta’ Envenenada

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ESTAREMOS PERANTE ‘TRATADOS’ OU UMA ESPÉCIE DE CAPTURA DOS ESTADOS E DAS SUAS INSTITUIÇÕES E LEIS?

Enquanto vai tudo a banhos, às escondidas da sociedade civil, dos parlamentos e das obrigações ético-políticas elementares em qualquer democracia, continuam a ser negociados dois tratados — um com o Canadá (CETA — Canada-Europe Comprehensive Economic and Trade Agreement) e outro com os EUA (TTIP — Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) —, que atingem a soberania e fazem recuar o direito e a democracia para níveis inimagináveis.

Mas porque é que estes tratados não podem vir a público e ser objeto de debate transparente e alargado? A resposta infelizmente é simples: sob pretexto à partida razoável de remover barreiras alfandegárias e aproximar a legislação entre os dois lados do Atlântico, acabam por permitir que as grandes corporações mundiais usurpem funções soberanas dos Estados, desde a justiça até às decisões essenciais para acautelar o ambiente, a saúde pública e o direito. Por isso, estaremos perante ‘tratados’, ou de uma espécie de captura dos Estados e das suas instituições e leis?

O CETA e o TTIP, alegando que vão facilitar trocas comerciais, parecem estar a preparar-se para mutilar direitos públicos e de cidadania decisivos. Por exemplo, se as corporações se sentirem lesadas na sua expectativa de lucro devido a mudanças legislativas nas áreas de ambiente, saúde pública e direitos laborais, podem processar os Estados, que serão julgados por tribunais arbitrais sem qualquer garantia de independência (a Philip Morris já processou o Uruguai por colocar avisos antitabágicos nos maços de cigarros).

Cerceia-se a liberdade dos cidadãos para escolher, limitando informação nas rotulagens, e a autonomia dos Estados para tomarem iniciativas locais contrárias aos interesses dessas corporações: por exemplo dificultando práticas de agricultura sustentável menos dependente de agroquímicos, ou pequenos circuitos locais de alimentos, ou até projetos de microgeração de escala local com energias renováveis. Tudo isto prejudicará as pequenas e médias empresas.

Liquida-se um valor central das políticas ambientais e de saúde pública na Europa, que é o ‘princípio da precaução’. Por exemplo, prevê-se que seja facilitada a entrada de organismos geneticamente modificados (OGM), que na UE têm fortes restrições à sua produção e introdução na cadeia alimentar. Tal como os pesticidas: os EUA permitem 82 já banidos na UE por serem muito perigosos, entre eles alguns com capacidade para desregular o sistema hormonal. E também várias substâncias químicas usadas em cosméticos, das quais a UE baniu 1378 e os EUA apenas 11. Tudo situações graves que interferem no ambiente e na saúde. A pretexto de harmonização, a tendência será nivelar as exigências por baixo.

Em suma, o que está em jogo é demasiado complexo para dizer em poucas palavras, mas fica o alerta: com estes Tratados, abre-se uma perigosa porta para o cidadão passar a ser um mero subordinado às decisões despóticas das grandes corporações que ganham uma prevalência enorme sobre as decisões dos Estados. Há um risco significativo de transferência de soberania dos Estados democráticos para as grandes empresas, seus acionistas, gestores e lóbis bem apetrechados de recursos jurídicos, liquidando a defesa dos interesses públicos e dos bens comuns face aos interesses privados.

Neste momento existe já um texto acordado com o Canadá e pretende-se, à pressa, uma aplicação provisional antes de ser discutido pelos Parlamentos nacionais. Impõe-se urgente clarificação por parte dos órgãos de soberania — da Presidência ao Parlamento. Mesmo que fosse para lhes reconhecer vantagens, não é possível que decisões desta envergadura sejam tomadas à porta fechada. É que os cidadãos podem ir para a praias, mas os órgãos de soberania têm por missão garantir o Estado e o direito, faça sol ou chuva.

Luísa Schmidt
Expresso 30.07.2016