Contributo da APRe! para a discussão pública sobre o modelo da ADSE

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Exmº Senhor Presidente da Comissão de Reforma do Modelo da ADSE

Tendo em conta que:

1. A discussão pública promovida pela comissão de Reforma do modelo de ADSE decorreu em condições muito precárias – 14 dias entre a divulgação do documento e o fim do prazo e comunicação da ADSE aos beneficiários a 4 dias do final do prazo estabelecido – e não pode substituir uma efectiva discussão pública no futuro.

2. A pretensão de afastamento do Estado da ADSE representa uma perda de direitos dos trabalhadores, aposentados e reformados da Função Pública e prossegue a desresponsabilização do Estado em relação aos compromissos assumidos com os seus trabalhadores. Para os beneficiários aposentados sair da ADSE, ou ver reduzido o esquema de benefícios, não é uma opção, antes configura uma situação desastrosa e injusta.

3. Os modelos apresentados tanto no estudo da ERS como da Comissão de Reforma requerem análise cuidadosa, dada a sua complexidade. Por outro lado, ambas as entidades referem a necessidade de alterações legislativas aos quadros jurídicos em vigor(designadamente, os que regem os Institutos Públicos e as Mutualidades), o que representa um elevado nível de incerteza.

4. Tendo em consideração os pontos anteriores, consideramos que há princípios centrais a salvaguardar tais como:

  • a) O Estado não se deve subtrair da administração e gestão da ADSE, não sendo de admitir que o seu papel se restrinja ao período transitório previsto;
  • b) Transparência e participação de representantes, legítimos, dos beneficiários na administração e gestão da ADSE;
  • c) A sustentabilidade da ADSE passa, entre outras coisas, pela adopção de medidas de racionalização e controlo de despesas e pela eliminação dos riscos de não permanência e não adesão dos beneficiários;
  • d) A solução que venha a ser encontrada não pode contribuir para a deterioração do SNS, antes devendo ser acompanhada pelo reforço do investimento no mesmo.
Em anexo, segue documento detalhado sobre posição da APRe! relativamente ao modelo futuro para a ADSE.

Com os melhores cumprimentos

Maria do Rosário Gama
Presidente da APRe!

Contributo da APRe! para o modelo da ADSE

A criação do ADSE em 1963 deveu-se à necessidade de “colmatar a situação desfavorável em que se encontravam os funcionários públicos em relação aos trabalhadores das empresas privadas” que já tinham caixas de previdência em vários sectores profissionais. Até então, a assistência aos servidores civis do Estado era assegurada apenas em casos de tuberculose e de acidentes ocorridos em serviço. A ADSE não nasceu como um privilégio, apareceu como um complemento salarial, integralmente suportado pelo Estado, visando facilitar o acesso aos serviços de saúde, ou seja, a ADSE é, tal como o Estado a constituiu, parte integrante do salário.

A ADSE é o único seguro que o Estado, nas suas obrigações de entidade patronal, tem com os seus servidores. A ADSE não pode ser entendida como “benefício” que o Estado concede aos seus funcionários, mas como dever que o Estado tem para com quem o serve.

Em 1979 foi criado o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A partir desta data iniciou-se a contribuição de 0,5% do vencimento dos funcionários públicos, o que os penalizou porque o complemento salarial/pensão (entenda-se os serviços prestados pela ADSE) diminuiu e a prestação dos serviços pela ADSE passou a ser compartilhada entre o Estado e os seus funcionários. Nesta data os aposentados estavam isentos. A ADSE foi mantida porque o SNS não tinha capacidade para resolver todos os problemas de saúde e o Estado tomou como certo que o SNS não substituía a ADSE, como entendeu que o SNS não esvaziava o papel da ADSE.

Em 1981 o desconto subiu para 1%. Em 2005 a inscrição na ADSE passou a ser facultativa e o DL 234/2005, de 30 de Dezembro, equipara a ADSE a entidade administradora das receitas provenientes do desconto obrigatório. Em 2006 os aposentados começam a descontar 1% e os activos sofrem novo aumento da sua prestação, passando para 1,5%.

Só em 2007 os descontos dos beneficiários passaram a ser considerados receitas próprias da ADSE. Em 2012 deixou de haver transferências do Orçamento de Estado para cobrir o orçamento da ADSE, mas manteve-se uma contribuição como entidade empregadora de 193 milhões de euros. Desde maio de 2013, a ADSE deixou de suportar a facturação das farmácias localizadas no Continente, tendo passado a responsabilidade da conferência e do pagamento para o Ministério da Saúde. Em 2014 a contribuição dos aposentados foi fixada em 3,5% e o Estado deixou totalmente de suportar encargos com a ADSE; esta percentagem excessiva permitiu que a ADSE terminasse o ano de 2014 com um saldo positivo de mais de 200 milhões de euros.

Mesmo descontando 184 milhões de euros pagos às farmácias em 2009, verba que passou depois a ser suportada pelo SNS, temos uma progressiva desvalorização do complemento salarial pago pelo Estado, que em 2009 transferia 598 milhões de euros e passou para 0 em 2015. Os aposentados entre 2005 e 2014 foram particularmente atingidos por estas reformas, pois viram os seus descontos subirem de 0% até 3,5% .

Verificamos assim que, tendo aderido compulsivamente a um sistema complementar de seguro de saúde, os aposentados da função pública têm vindo a assistir a uma constante desresponsabilização do Estado em relação aos compromissos assumidos com os trabalhadores; e esses compromissos não eram, como se tem feito crer, nada de extraordinário.

O SNS é um bem precioso que nem todos conseguem valorizar devidamente; mas a questão que se colocava em 1979, quando foi criado o SNS, volta a colocar-se agora: tem actualmente o SNS capacidade de resposta para as necessidades de saúde de todos os portugueses? O tempo de resposta de uma consulta de especialidade ou de uma cirurgia que se conseguem pela ADSE em poucos dias, pode levar muitos meses a obter resposta no SNS. O SNS responde bem aos cuidados primários, atinge níveis de excelência em muitos internamentos, mas falha completamente noutros sectores, por exemplo no acesso a consultas de especialidade. Se actualmente não responde a todas as necessidades, conseguirá responder a mais 1,3 milhões de utentes que usam o ADSE?

As transferências anuais do SNS para o sector privado são, em média, quatro vezes superiores ao valor pago anualmente pela ADSE aos grupos privados“, pelo que as preocupações políticas terão de se centrar na melhoria do SNS, que apesar da existência da ADSE não consegue responder às necessidades. Tal como em 1979, a ADSE permite hoje responder a muitas situações para as quais o SNS não tem capacidade.

A ADSE, para garantir a sua sustentabilidade, tem de tomar medidas de racionalização de despesas, desde logo fazendo o controlo dos gastos por beneficiário; evitar o acesso sem qualquer critério a consultas de especialidade, integrar, como já acontece no SNS, toda a informação evitando redundâncias.

Actualmente a ADSE já não representa qualquer encargo para o Estado. Já não se podem invocar demagogicamente supostas situações de desigualdade. O que se pode dizer é que os funcionários públicos activos ou aposentados, a juntar a todos os congelamentos e cortes, tiveram de suportar mais um agravamento nas suas despesas.

Para além de vítimas de mais uma quebra de contrato, os beneficiários aposentados da ADSE enfrentam um problema suplementar: tendo contribuído durante dezenas de anos para um seguro complementar de saúde, quando em média não beneficiavam grandemente dessa circunstancia, vêm com enorme perplexidade a perda das regalias que em muitos casos não usufruíram. Um exemplo elucidativo resulta da comparação dos limites standard de um seguro privado, que eventualmente seria alternativa a ADSE, iniciados com idades diferentes.

Para um aposentado idoso sair agora do ADSE é uma opção obviamente desastrosa e injusta. Colocar essa alternativa é desvalorizar os conceitos de Estado Social.

Se o Estado se tem demitido dos seus compromissos, pelo menos que tente evitar que a ADSE seja uma presa fácil das seguradoras, garantindo através de um Instituto Público, como veremos adiante, uma gestão transparente com participação dos beneficiários da ADSE, não só trabalhadores no activo como aposentados.

Passemos à análise das opções previstas pela Comissão de Revisão:

“Três opções globais, pelo menos, surgem como possíveis:

  • a) Extinção da ADSE;
  • b) Mutualização, entendida num sentido amplo;
  • c) Passagem da carteira de titulares e beneficiários da ADSE a entidades especializadas na gestão de contribuições e benefícios de seguros de saúde, passando a existir uma relação unicamente entre esses dois grupos de agentes.” (linhas 584-590)

1. A extinção da ADSE – o Estado demite-se das suas obrigações como entidade patronal quebrando a relação laboral com os seus trabalhadores, desresponsabiliza-se do seu papel de Estado social e quebra os compromissos assumidos com os seus trabalhadores, violando direitos constituídos.

2. A mutualização da ADSE (solução do programa do PS) – tornaria a ADSE complementar ao sistema público de segurança social.

A ADSE não é um sistema complementar – porque não completa nem complementa o SNS. O SNS é tendencialmente gratuito, universal e abrangente.

Numa transição para a mútua – que não pode deixar de ser voluntária –perder-se-iam muitos milhares de aderentes, o que colocaria em risco o seu equilíbrio financeiro ou, para o atingir, seria necessário aumentar as quotizações, tendo como consequência tornar desinteressante e pouco concorrencial a adesão à mútua.

A ADSE não é gratuita nem universal, apesar de ter um sentido solidário que lhe é conferido pela percentagem de desconto em função do salário, contrariamente às mútuas que preveem quotizações de igual valor para os associados, impondo uma quota demasiado elevada para muitos funcionários públicos ou, em alternativa, a redução dos benefícios.

3. No que diz respeito à 3ª opção, a cedência de uma carteira a entidades de gestão de seguros de saúde, beneficiaria apenas a entidade que tomasse essa “carteira” porque (legitimamente) essa entidade privada alteraria brevemente a génese da “ADSE” com um único objectivo – o lucro –, implicando uma total desresponsabilização do Estado em relação aos seus trabalhadores, ferindo os princípios constitutivos da ADSE.

Para que este processo pudesse ocorrer teria que haver por parte dos funcionários públicos e dos aposentados (subscritores da ADSE) uma decisão e aceitação favorável, o que não nos parece que seja consensual.

Conclusão:

As duas únicas opções aceitáveis, no entendimento dos associados da APRe!, são:

  • manutenção do sistema da ADSE tal como está, mas com gestão participada dos “beneficiários” e com estatuto jurídico que assegure a autonomia financeira e patrimonial. 
  • extinção da ADSE como Direcção Geral e a sua passagem a Instituto Público na tutela do Estado com gestão participada pelos representantes dos funcionários públicos no activo e dos aposentados, dotado de plena autonomia administrativa e financeira. É necessária uma forte presença pública para garantir soluções de justiça e equidade na gestão do sistema.

Pensemos, por exemplo, nos reformados, que contribuíram durante 35 ou 40 anos para a ADSE, enquanto trabalhadores do Estado no activo, e que continuam a contribuir, após a reforma.

Essa longevidade contributiva tem de ser protegida e salvaguardada.

A inscrição na ADSE deve ser voluntária, podendo inscrever-se os funcionários com contrato de trabalho celebrado com a administração central, regional e local.

As tentações, com que alguns já acenam, de fazer ingressar no sistema da ADSE gente nova, mesmo de fora do perímetro do Estado, poderá fazer desequilibrar as contas, que até agora têm dado e sobrado, e diminuir, por razões de “sustentabilidade”, as condições de assistência médica aos reformados, numa altura em que cada vez precisam mais dela.

Decorre do artº 47º da Lei 3/2004, de 15 de Janeiro, que a Assembleia da República pode aprovar uma lei específica para a ADSE, em que determine que, quer a nível de gestão quer a nível do órgão com poderes efectivos de fiscalização, existam representantes do Estado e dos subscritores, sendo estes na totalidade ou parcialmente indicados pelas associações representativas dos trabalhadores da função pública e dos aposentados.

Com este modelo a ADSE ficaria mais protegida de qualquer tentativa de privatização ou de ser capturada por grupo de interesses alheios aos interesses dos beneficiários. A entrega da ADSE ao mercado não protegerá de modo nenhum os beneficiários.

Coimbra, 14 de Junho de 2016 
Pela Direcção 
Maria do Rosário Gama