Convergência

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A LEI DA SELVA
Com os votos dos partidos da maioria – PSD e CDS – , a Assembleia da República aprovou hoje a chamada “lei da convergência” – sofisma linguístico com que o Governo pretende iludir a opinião pública, convencendo-a de que com a lei se promove a aproximação da forma de cálculo das pensões de aposentação atribuídas pela Caixa Geral de Aposentações aos funcionários públicos à da forma como são calculadas as pensões de reforma atribuídas pelo Centro Nacional de Pensões aos trabalhadores do sector privado.
Segundo o discurso do Governo – falso, como dissemos –, o objectivo seria tratar com igualdade os dois sistemas, público e privado, de pensões.
O Governo consumou, assim, com a docilidade dos deputados da maioria, e ocultada pelo agendamento da sua votação final global para o mesmo dia da votação na generalidade do Orçamento, perante o silêncio quase geral, uma estratégia que durou vários meses e que se destinou a enganar os portugueses sobre o sentido e alcance das medidas – e que contou com a cumplicidade e colaboração de vários dos jornalistas cortesãos ao seu serviço, como é exemplo típico José Manuel Fernandes (veja-se jornal “Público, hoje mesmo). 
O objectivo dessa estratégia foi, como sempre sucede nesses casos, o de conseguir apoio popular para as medidas que se pretende tomar, para tanto falsificando a realidade e procurando atribuir justificações virtuosas para actos, em substância, iníquos e imorais, como os classificou a insuspeita Drª Manuela Ferreira Leite.
Desde o início da campanha de terrorismo informativo do Governo e dos seus comissários, procurando apresentar razões aparentemente respeitáveis para este corte retroactivo das pensões dos funcionários públicos, não deixou a APRe! de ir denunciando e desmistificando esta manobra vulgar – não deixando na gaveta este tema, a que deu a importância que ele merecia. 
Assim, logo na Concentração de 6 de Junho, junto ao Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, se entregou um texto que acabava deste modo:
«A partir do próximo ano, tanto quanto se consegue perceber através das suas parcas e dissimuladas afirmações, o Governo prepara-se para aplicar um corte permanente e retroactivo nas pensões dos aposentados da CGA, tendo a encenação em torno de um novo imposto, designado eufemisticamente por “contribuição ou factor de sustentabilidade”, que substituiria a actual CES, sido utilizada como cortina de fumo para encobrir este novo corte. Tudo isto, utilizando uma vez mais a táctica de fomentar a divisão, procurando isolar os aposentados da CGA dos pensionistas do CNP, disso tentando tirar partido».
Isto é: logo que se começou a saber do que se preparava, a nossa associação alertou para a infâmia daquela enormidade legal.

No início desta semana, escrevia eu aqui (texto ” Lutando pelos nossos direitos, é pelo Direito que lutamos”) :
«A “APRe!” não pode deixar isto em branco. A mesma “APRe!” que se insurgiu, desde o primeiro dia, contra esta barbaridade, do ponto de vista legal – que sempre afirmou a sua firme oposição a ela e insistiu no que significaria a sua aprovação: que, logo no mês seguinte, em Julho, já ciente do que o Governo preparava, encetou diligências com outras organizações para uma acção comum, neste âmbito – com vista a «uma resposta conjunta e mais eficaz que possa travar esta onda»; que deu o seu parecer jurídico para a discussão pública, na Assembleia da República; que foi depois ouvida, em audiência junto da Comissão competente, relativamente a ele; que marcou a sua posição, nesse mesmo dia, com uma “Nota à Imprensa” enviada para a Comunicação Social; que reuniu com o Provedor de Justiça, os grupos parlamentares e até com o secretário de Estado responsável por esta Proposta de Lei; que foi recebida pelo Presidente da República, tendo-lhe manifestado a sua posição, quanto ao que se preparava; que promoveu manifestação de protesto junto à CGA, tendo muitos dos seus associados advertido a mesma CGA (formalmente, por escrito) de que nunca aceitariam tal recontagem, à sua revelia; que esteve presente na aprovação, na generalidade, desta infamante Proposta de Lei, na Assembleia da República, enquanto no Porto se distribuía à população um “flyer” sobre o assunto… A mesma “APRe!”, dizia, terá de estar até ao fim contra este atentado ao regime.» 
E dizia também temer que, sem sobressalto nem indignação visível, tivéssemos de assistir, “no mesmo dia 1”, e pela primeira vez, aqui ou noutro país tido por “Estado de Direito”, a essa machadada que seria a votação final e global de uma lei impensável: restritiva de direitos, com carácter retroactivo. Machadada que abre uma enorme brecha – na democracia e na legitimidade do governo. Precedente inadmissível em qualquer país civilizado.
Uma lei que sempre se tentou escamotear: nos pretextos, na sua Exposição de Motivos e inconsequentes Disposições Legais; nos recados à Comunicação Social; na sobreposição permanente de factos novos que a deixassem na sombra e viessem distrair dela as atenções…; e agora, finalmente, até no agendamento da sua aprovação, feito um tanto “às ocultas”. 
Escrevia eu:
«Pareceu-me estranha, a sequência – e o provável cruzamento dos processos, que estão em andamento diferente, nessa data. A infeliz coincidência revela até que ponto podemos ser levados – enquanto nos concentramos numa coisa, outra avança, inexoravelmente. Sempre contra nós – como tem sido o caso. 
Entendo – e sempre aqui o disse – ser mais grave, em termos reais e simbólicos, a aprovação da dita “convergência”. Independentemente dos montantes em jogo, individualmente considerados – bem sabemos que se trata de “cortes” que serão, em geral e “grosso modo”, idênticos ao abuso da CES. A questão é, todavia, outra – e é princípio de que não podemos abdicar. Enquanto se trata, para a CES, de mais um “imposto”, arbitrário, encapotado (que não altera o montante ilíquido atribuído um dia àquela pessoa, em função dos critérios legais), neste caso trata-se, antes, de proceder a um recálculo, acabando com o que fora estipulado. E é só essa retroactividade (que serve esse carácter definitivo do “corte”) que ali se joga – na nossa frente, de forma legalmente despudorada. Pela primeira vez – note-se bem! – num “Estado de direito”, como se suporia ser o nosso… até à data!» 
Acrescentando, a seguir: 
« Porém, eis o que entendo: na 6ª feira, enquanto se protesta, a pretexto da aprovação na generalidade do Orçamento, contra quase tudo quanto nele cabe, há-de estar esta Proposta a ser aprovada – em votação final! Não vejo quem disso fale. Na própria AR, mal vejo onde isso vai caber. Nem a CGTP se lhe refere. E contudo… – é a primeira vez que assim se enterra o regime: nem a aparência de democracia, de “Estado de direito”, esta lei salva.» 
Por isso, concluía: 
«É aí que a “APRe” deve estar – contra o que ali, concretamente, desta vez se joga. De acordo com o que sempre disse da “convergência” e o que são os seus princípios:
«E não abandonaremos nenhuma das formas de luta ao nosso alcance para evitar que se consume a destruição do Estado de Direito. Lutando pelos nossos direitos, é pelo Direito que lutamos.» 
Companheiros: tenho de concluir, agora, com todo o desalento que este dia por isso me merece: infelizmente, não esteve. A “APre!” não assinalou hoje a sua indignação – a marcar devidamente este dia. Hoje mesmo, que para mim datas são datas, sinto-me eu muito mal. Aqui sozinha, não posso deixar de vos dizer da minha decepção pelo que ali, na Assembleia, em nome do povo, esta maioria votou. O acto é, para mim, inqualificável.
Um abraço de solidariedade a todos.

Aida Santos