Desgarrada

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O que podemos nós fazer quando alguém já de uma certa idade, com determinada carreira, se permite escrever algo como o que foi escrito, de que agora bastava ser “preto ou gay” para ganhar os Óscares?

Seria fácil para mim pegar numa série de barbaridades respondendo à letra com a desculpa de que estava a brincar, bastava aliás pegar em excertos de entrevistas anteriores ou de uma série de episódios tristes com que nos brindou mas a diferença é que eu não brinco com coisas sérias.

Preocupa-me no entanto este novo formato de liberdade onde a todos tudo é permitido dizer , onde a agressão física é punida por lei mas a psicológica pode ser confundida com uma brincadeira ou com a necessidade de informar. E certa comunicação social está também longe de dar o exemplo. E assim vamos nós com a falta de bom senso e de educação pelos mais elementares valores e princípios que deveriam existir entre pessoas, entre sociedades e civilizações. De repente parámos num vácuo que sufoca a mais simplista das definições de liberdade e que a confunde com a mais cruel libertinagem.

Como podemos nós viver tranquilos quando uma frase irresponsável e incendiária faz despoletar de seguida outras igualmente odiosas e ofensivas em resposta a essa? É para isto que caminhamos, uma escalada de violência , de parada e resposta , de fanatismos reacionários e obtusos , das hordas de saqueadores do respeito que nos deveria guiar por convicção. O que leva alguém tão experimentado já com filhos e netos, que conhece o perigo deste admirável Mundo novo chamado de Redes Sociais dar-se ao direito de proferir de uma forma tão leviana tal ignomínia e estultícia?

É de uma tristeza tal que dá pena, ver o clima de gozação com que os mais impuros se declaram impunes e em que aos mais puros tudo lhes é exigido e vilipendiado. Às vezes só apetece é responder e apedrejar, bem sei, mas esse nunca poderá ser o caminho. Perguntar-me-ão, “mas foi assim tão grave o que foi dito?” Como não? É um sucessivo rol de asneiras de um cada vez mais extenso grupo de pessoas. Por exemplo o jogador afro-americano Stoudemire que disse há poucos dias que “faria um percurso diferente para o balneário se soubesse que o partilhava com um homossexual”. Não sou podem ter a certeza, dos fanáticos a quem acha que coitadinhos dos indefesos a eles não se pode dizer nada. Longe disso. Não tem a ver sequer com o grupo de pessoas específicos, podiam ser chineses, mulheres, ou árabes, é-me igual. Tem a ver com o princípio.

O tempo dos marialvas em que destratar mulheres, homossexuais, pessoas de cor e de qualquer outro tipo já lá vai, já não cabe mais aqui. E não, não se pode brincar quando não se sabe brincar, ou quando o usamos como subterfúgio cobarde para esconder em forma de troça aquilo que nos vai na alma. Ou pensa que somos todos parvos? Sempre ouvi dizer que a brincar se dizem as verdades mas na realidade as ações ficam com quem as pratica. Eu da minha parte acho que só dá pena, sim pena porque era o que sentiria se o meu pai ou o meu avô escrevessem uma coisa daquelas. Acho por isso também absurdo virem pessoas a seguir desejar-lhe a morte e declamar um chorrilho de obscenidades. É caso para voltar a um fado de Ana Moura , “onde foi que nos perdemos, como foi que aconteceu?”. Se fossemos todos crianças, não saber brincar na escola antigamente dava direito a castigo. Aqui, está na altura de punir estas acendalhas humanas talvez com a mais nobre das respostas. Deixá-las arderem sozinhas no meio da sua pequenez de espírito.

José Paulo do Carmo
Jornal i 03.03.2017