Escândalo na TV

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O filme de Sidney Lumet “Escândalo na TV” (Network, no original) estreou em 1976 e é um documento notável pela antecipação profética da degradação imparável do jornalismo tradicional e das perversas consequências sociais que hoje testemunhamos. A sua estreia, há 41 anos, suscitou intensa polémica. A atualidade do filme e da discussão que então desencadeou são óbvias.

Howard Beale, jornalista na estação de televisão UBS, é o apresentador do Telejornal da Noite que continua a perder audiências em benefício das estações de televisão concorrentes. A morte da mulher deixara-o viúvo, sem filhos. Frustrado e deprimido, impotente para contrariar o crescente desinteresse do público, descontente com o Mundo e com aquilo que faz, Howard Beale começa a refletir sobre a sua função de jornalista da TV e o seu comportamento torna-se cada vez mais errático e imprevisível. E chega o momento em que o seu amigo e velho colega Max Schumacher, diretor do departamento de Informação da estação televisiva, lhe vai comunicar, atormentado, a decisão de o despedir. Acabam essa noite completamente ébrios, no balcão de um bar, onde entabulam uma extraordinária conversa que resume o essencial da trama narrativa do filme que começa.

O jornalista dispensado confronta o diretor do departamento de Informação com uma única exigência: reclama a oportunidade de se despedir dos seus ouvintes para lhes deixar a sua última mensagem: “Vou dar um tiro na cabeça em direto no Telejornal das 7”. Max Schumacher, tão bêbedo quanto ele, responde, com uma réstia de irónica lucidez, que o impacto nas audiências seria notável. E que até podiam ir mais longe e inaugurar um novo estilo de “informação”. Diz o diretor do departamento: “Podíamos fazer uma série disso: “Suicídio da semana” ou, porque não, “execução da semana?”” Ou até, sugere o jornalista despedido, “terrorista da semana?” Mas é Max Schumacher quem conclui: “Vão adorar… suicídios, homicídios, bombistas loucos, assassinos da máfia, acidentes de carro, a hora da morte… Um grande programe de domingo à noite para toda a família!”

O último desejo do apresentador do Telejornal da Noite acaba por se cumprir. E com tão retumbante sucesso que as audiências disparam e a decisão de o despedir, por algum tempo, fica suspensa, sobretudo devido ao receio de que a concorrência logo o fosse contratar. Mas o êxito é passageiro, a concorrência é feroz, a situação financeira do canal é muito precária e, por isso, a Direção da UBS acaba por deliberar após colegial ponderação que a melhor maneira de se desembaraçar do incómodo apresentador do Telejornal da Noite, é, nem mais nem menos, assassiná-lo em direto!

A violência apoderou-se da sociedade contemporânea e invadiu os meios de Comunicação Social que reservam o grosso do espaço informativo, as primeiras páginas, os horários nobres, a toda a espécie de catástrofes, aos terramotos, às inundações, aos fogos florestais, aos atos terroristas e às obscenidades brutais diariamente debitadas pelo presidente dos Estados Unidos da América. A informação tornou-se um mero condimento do espetáculo. Os telejornais parecem um reality show. Exibe-se demorada e repetidamente as feridas das vítimas, o sangue dos agressores, a ruína das casas consumidas pelas chamas, as lágrimas que correm dos olhos de quem tudo perdeu ou o esgar de dor no rosto dos sobreviventes. Ontem, Donald Trump responsabilizava a Comunicação Social pelas profundas divisões em que ele próprio mergulhou a sociedade americana, ao mostrar-se incapaz de condenar a violência racista dos terroristas brancos de Charlottesville. De facto, a eleição de Trump é ela própria resultado dessa promiscuidade entre a verdade e a ficção, a informação e o espetáculo. Resta-nos partilhar a esperança de Clara Ferreira Alves na regeneração dos média: “Quando entenderem que não são os campeões deste jogo virtual, talvez se dediquem a refazer o jornalismo segundo as regras deontológicas que o formaram e que o farão resistir”.

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos
Ler mais em: Opinião JN 24.06.2017