Esta noite, em Abril

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Esta noite, vou deitar-me sem saber que os militares preparam um golpe que haverá de trazer a democracia. Quando acordar não saberei nada sobre o que se está a passar, mas será num grande sobressalto que a aula da quarta classe será interrompida. E o país vai precisar que se passem dois dias até que a minha professora perceba que o golpe militar foi tomado de assalto pelo povo, que anseia pela liberdade. Quando ela perceber, vai tirar da parede a foto do ditador. E vai guardar a cana com que castiga de igual forma o cansaço e a preguiça.

Depois, o tempo vai correr veloz, até que chegue o dia de escrever este texto a olhar para trás. Nesse tempo que vai correr, eu, como muitos outros portugueses, terei tempo para ser de esquerda, tempo para ser de direita e até tempo para ser coisa nenhuma. E em todo esse tempo, aquilo que nos vai separar será sempre uma consequência da liberdade conquistada. É por causa dessa liberdade que até poderão aparecer alguns com saudades do ditador. E vão poder defendê-lo sem que lhes aconteça a eles o que acontece a quem falar de democracia, até esta noite, em Abril.

Haverá desilusões e o país andará aos altos e baixos, primeiro por causa de extremismos ideológicos e depois pelo desaparecimento das ideologias. Cometeremos erros e pediremos ajudas ao exterior, que o povo terá de pagar até ao último centavo. A moeda será outra e bem mais poderosa. Com muitas queixas, poderemos fazer as contas e descobrir que o PIB per capita será neste ano da Revolução inferior a 260 euros, mas será superior a 16 mil euros quando alguém estiver a ler este texto. Não se tratará apenas de ter mais dinheiro na mão de cada português, isso terá significado em relação à mortalidade infantil, que deixará de ser de 44,8 por cada mil nascimentos para se reduzir para 2,9 quatro décadas depois. E quando essas crianças crescerem entrarão em muito maior número no ensino superior.

Com esta comparação entre o que o país é hoje e o que será 40 anos depois, seremos capazes de perceber que Abril se faz caminhando, nunca satisfeitos, sempre tentando conseguir o que nos vai ser prometido. Saberemos, a partir da madrugada de amanhã, que a liberdade tem um preço que teremos de pagar pelo que fizermos com ela. Andaremos muito tempo zangados com os eleitos, virando as costas à liberdade, com a desculpa de que ela de pouco nos serve, não cuidando de recordar o que era a vida em ditadura. Esta noite, em Abril, 42 anos depois, seria bom que soubéssemos o que a liberdade custou a conseguir. Seria bom que percebêssemos que, mesmo com queixas, valeu a pena. Sempre sabendo que aquilo que nos separa é fruto daquilo que nos une: a Liberdade!

Paulo Baldaia
DN 24.04.2016