Eu Vou

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Eu vou manifestar-me. 
Porque, em consciência, o sinto como dever – não posso consentir o que se passa. Porque não posso fechar olhos e ouvidos nem desviar pensamento e sentimento do que vejo e ouço, do que penso e sinto. Ciente – e por isso responsável – , não posso abster-me de uma luta que é minha. 
Porque cada um de nós é responsável pela política – que a todos diz respeito. 
Porque a democracia são os partidos – mas, antes deles, os cidadãos. E esta partidocracia secou tudo à sua volta – e não deixa alternativa. Porque nos reduziram a isto – para nos fazermos ouvir, só resta a rua. 
Porque a “res publica” é coisa séria – e cada vez há menos respeito por ela, cada vez menos “publica”. Porque àquilo a que uns chamam “Estado”, para o reduzirem a “despesa” – chamo eu doutrina social da Constituição: o fundamento do regime que os sustenta. Porque a aproprição do Estado pelos partidos do regime e seus apaniguados o deixou à mercê dos que, ao invés de o defenderem, nas suas funções mais nobres, representam os interesses dos que as querem exíguas – para dele se irem servindo até o tornarem exangue. E porque estes governantes não podem decidir “cortes” e respectivas excepções a seu bel-prazer – nem o Estado é quinta deles nem nós ajoelharemos perante os poderes de que eles são criados. 
Vou pela educação, pela saúde, por mais segurança no trabalho – e respeito pelas reformas. 
Vou, pois, contra a soberba das castas do poder (político, financeiro, mediático) e o cinismo do discurso político. Contra a deturpação permanente e o escândalo das desigualdades – insuportáveis. Contra as políticas não sufragadas – intoleráveis. Contra as leis ocultas dos mercados – sem escrutínio, sem nomes e sem rosto. Contra a desumanização da política e a subserviência destes políticos à barbaridade mercantilista . 
Para juntar a minha voz à de outros. Para derrubarmos estes muros, contra nós erguidos – e mostrar que não nos deixaremos emparedar. Para dizer a este governo: que contra nós governa. E lembrar a este regime de apaniguados dos partidos : que fomos nós que o criámos e somos nós que os sustentamos – ou os derrubamos. Que para perverter ou subverter as funções mais nobres do Estado, as “sociais”, não têm mandato nosso. Se o Estado não as defende e respeita, para que nos serve o resto do Estado – os outros Estados de que se apropriaram e em que têm assento? 
Vou pelo meu país. 
Por um país decente – em que os poderes sejam os legítimos, as políticas as eleitoralmente sufragadas e os políticos responsáveis. Em que o discurso político seja claro, coerente e consequente – sirva para explicar, esclarecendo, e não para escamotear, deturpando. Em que a letra diga com a careta. Em que todos percebam o sentido das escolhas – e estas se sujeitem aos princípios da equidade, da confiança e da transparência. Em que a sua aplicação, sob escrutínio público, não baralhe nem oculte a teia de excepções que contradizem a propaganda debitada pelos dirigentes, pelos validos e pelos media. 
Por um país cada vez mais solidário – e cada vez menos desigual. Em que o Estado cumpra dignamente as suas funções – aquilo para que nos serve. Ao serviço dos cidadãos – e não cativo de interesses que dele se servem e banquete a que só alguns têm acesso, dele eternos convidados. Um Estado honrado – em vez de vilipêndio na boca dos que tomam esta “res publica” por couto privado e homizio de validos. 
Vou pelo meu país, repito – contra a miséria do país de antigamente, a que não quero que volte. A miséria de vida e a miséria moral, a miséria da ignorância e do medo. A miséria dos meninos (meus colegas) que iam para a escola (a primária em que andei) a pé, descalços ou de socos, com uma saca de pano de cotim: para a lousa e o ponteiro, e depois os cadernos e lápis, mas também o pedaço de broa ou sêmea… A miséria dos que iam, num dado dia da semana, “pedir” a casa de quem tinha… Dos que, pelo aniversário, tinham de presente alguma comida de que gostassem à mesa. A miséria dos que não podiam seguir estudos. E dos que, mesmo já no liceu, nunca tinham ido ao cinema. A miséria das desigualdades e da repressão. Do escândalo de festas privadas e do escândalo dos que não tinham nada. Das aparências – quando veio a Rainha de Inglaterra ao Porto, houve ordens para se limpar das ruas mendigos e maltrapilhos – e foi cumprida. E todas as outras misérias – as indignidades políticas da ditadura.Tive a sorte de me ensinarem a ver – a estar atenta e a nunca esquecer que o mundo era bem mais do que o nosso pequeno ninho. A sorte de aprender: do que quer dizer igualdade – e do que é dever de solidariedade; daquilo por que somos responsáveis; e do maior bem: a liberdade. 
Vou contra a miséria do passado – e a cada vez maior hipoteca do futuro. 
Vou pelos jovens: por uma política que não continue a roubar-lhes a esperança, negando-lhes qualquer promessa, ou sequer sonho, de futuro aqui. Excluindo-os (a não ser os que cursem as jotas e se formem nas manobras das hostes dos partidos) e convidando-os a irem sonhar para longe. 
Vou pelos trabalhadores. Antes de mais, pelos desempregados. Por cada um deles, mais jovem ou mais velho, a quem foi retirado o direito a uma vida digna. Por quem é abandonado à sua sorte, no “ajustamento” em curso. Pior: tratado como se tivesse falhado por culpa sua, como um peso que ainda devesse ao “Estado” desta gente, e por isso ameaçado de “cortes”, por serem os subsídios “muito generosos”. Quem pode ouvir isto – e calar? 
Vou pelos funcionários públicos. Por cada um daqueles que se dedicam à causa pública por escolha, por convicção pessoal – e nem esse esforço, que nada paga, vêem reconhecido. Olhados de soslaio pelos preconceitos bacocos dos exemplares “empreendedores” (da economia privada que temos), foram desconsiderados. Porque o valor que o seu trabalho devia merecer-nos foi substituído, num irresponsável discurso político, pela sua redução a “despesa pública”. Dos que puderam (furtar-se ao desprestígio, à ofensa do seu brio e dignidade), os melhores saíram. Lessem os dirigentes aquele texto de Valter Hugo Mãe sobre os professores ou aqueloutro de Baptista- Bastos sobre o hospital público, e talvez aprendessem bem mais do que com esses gurus financeiros que por aí pululam – mestres, quando muito, de cerimónias… 
Vou por cada trabalhador que a insegurança instalada explora – capaz de ir trabalhar doente para não perder o dia ou não cair em desgraça; daquele a quem o chicote do medo vergasta e os cortes no salário reduzem à subsistência primária; do que tem quem dele dependa e por isso se tem de sujeitar… não a deixar de comer bifes todos os dias – mas para ter comida na mesa, três vezes por dia, ao longo de um mês. 
E vou, finalmente, por cada reformado – por cada um dos velhos (ou dos mais velhos dos que estavam “no activo” e que esta política de atropelos cuidou de atirar para a reforma, desse modo os penalizando) que têm honra – e merecem ser honrados. Para eles, este tempo é o que conta – não têm outro. Este presente a que os condenam é o futuro que têm. 
Não foram eles, educados na frugalidade, que gastaram “demais”. Nem têm eles nenhuma particular dívida, perante outros quaisquer rendimentos, de “solidariedade” – pelo contrário, são é credores da contribuição solidária dos rendimentos superiores que a lei dispensa de tal imposto. 
Devem contribuir, sim, de acordo com os seus rendimentos – o que já fazem, pagando os seus impostos, como se estivessem “no activo”. Deram a sua contribuição toda a vida, como por aí se diz – o que não se diz é que continuam a dá-la. 
Não é legítimo, por isso, o massacre fiscal de que são alvo exclusivo. Propagandear que não descontaram “para aquelas reformas” não tem qualificação. Fazê-lo perante “jotas” é de aprendiz de feiticeiro. E é exemplo, a dar logo frutos: “A nossa Pátria foi contaminada pela já conhecida peste grisalha” – teve o desplante de escrever um deputado desta maioria. Que fizemos nós para merecer isto? 
A geração dos actuais reformados não há-de deixar passar esta afronta. Estão nela os que trabalharam desde crianças, os que tiveram uma vida bem mais dura do que qualquer dos mais jovens pode sequer imaginar, os que trabalharam sem descanso para o bem-estar dos que vieram depois, os que lutaram para conquistar os direitos tidos hoje por naturais, os que estiveram nas lutas estudantis, os que fizeram o 25 de Abril, os que suportaram até hoje o regime – e o pouso de quem agora assim os trata. 
Será deles que fala quem, responsável por tais contas, diz sermos “o melhor povo do mundo”? Dos trabalhadores? Dos desempregados? Dos jovens? 
Vou pela democracia – pelo respeito das regras e dos procedimentos democráticos. 
Pelos direitos suspensos e pelas garantias confiscadas. Contra os que ousaram fazer da Lei fundamental letra morta. 
Pelos partidos – que ainda não cuidaram de ver o esvaziamento de sentido das suas manobras, no atoleiro por que são responsáveis. Que ainda não viram que já chega – e que não terão, também eles, alternativa. Contra a exclusividade de cozinharem listas de deputados que nos envergonham – e contra a “disciplina de voto” de que fizeram lei, indigna para qualquer deputado da Nação. Contra a não partilha do poder. Vou pelas regiões – e contra a menorização da política, o poder centralizador e aparelhístico dos partidos, que até hoje se não lembraram de que nem faz já sentido a proibição de forças regionais que nos impuseram nem de que muitos fiascos derivam precisamente do monopólio que exercem. É aí, e não alhures, que é imperioso “refundar” o “Estado”. Para que os partidos que o controlam ganhem alguma credibilidade. Porque o Estado que são eles, e que pela voz deles nos desrespeita, precisa do respeito de todos. 
Hei-de ir. Aquele braço erguido, a bradar aos céus, há-de ser meu. Aquele grito de voz com pronúncia do Norte, há-de ser o meu. Tão alto quanto a minha indignação. 
APRE! 
Aida Santos