Golpe de Estado nas pensões?

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Os últimos dias foram marcados por um acalorado debate nos media sobre a proposta da coligação Portugal à Frente (PaF) quanto a um “plafonamento” das pensões: “a partir desse limite [deve] garantir a liberdade de escolha entre o sistema público e sistemas mutualistas e privados.” “Esta reforma deveria ser objecto de um consenso alargado” (p. 37).

Como seria de esperar em vésperas de campanha eleitoral, a posição do PS sobre esta reforma foi muito crítica.

Tivemos direito a ouvir a acusação de que a PaF defende a privatização das pensões, retirando receitas ao sistema para estimular o mercado dos fundos privados. Diga-se desde já que a reforma de 2007, de que o PS tanto se orgulha, foi muito elogiada pelas instituições internacionais porque, além de introduzir uma fórmula de cálculo que reduz substancialmente o nível de vida da população idosa, introduziu a capitalização pública e promoveu a privada.

Por conseguinte, é preciso lembrar que foi num governo do PS que o contrato social de solidariedade entre gerações – quem trabalha desconta para quem não pode trabalhar – recebeu a primeira marca de forte abertura à privatização. Hoje sabemos que essa tão louvada reforma não conferiu maior sustentabilidade ao sistema de pensões. Desde então, o PS absorveu a propaganda do envelhecimento demográfico para justificar a reforma, até porque o seu europeísmo o obrigava a ignorar a verdadeira ameaça ao sistema, o crescimento anémico da economia com desemprego crescente, fruto da nossa participação na zona euro.

Pois bem, no seu programa eleitoral, o PS dá continuidade à propaganda do “envelhecimento demográfico” (p. 50-51) com uma extensa lista de medidas que, sendo eventualmente necessárias, são manifestamente insuficientes e desviam a atenção da causa em que é necessário mexer em profundidade, a impossibilidade de uma política económica geradora de emprego. Na campanha eleitoral que se aproxima, desviar a atenção do essencial é uma manobra crucial para o PS porque, se falhar nessa manobra tática, deixará à vista o quanto de estrutural têm de comum os programas dos partidos europeístas.

Porque será que a mais danosa proposta da PaF sobre o sistema de pensões, “A criação de uma “Caderneta de Aforro para a Reforma”, que reflita todos os movimentos registados na Conta Individual do beneficiário”, na mesma p. 37 em que se refere o “plafonamento”, foi até agora silenciada? Até hoje, nenhum porta-voz do PS se indignou contra esta proposta de reforma estrutural do sistema de pensões que, de facto, representa o fim do modelo de solidariedade entre gerações que sustenta a democracia portuguesa. Repare-se, a coligação PaF propõe o desmantelamento do sistema público de repartição solidária, e a sua substituição por um sistema individualista (cada um com a sua Conta Individual).

E o PS não tem nada a dizer? Muito estranho este silêncio ensurdecedor, a contrastar com a indignação, alto e bom som, contra o “plafonamento”. Repare-se que este é apenas um detalhe no conjunto de uma “reforma estrutural” de matriz neoliberal: a introdução de um sistema de “contas individuais” já adoptado em alguns países sob pressão das instituições internacionais, um sistema que privatiza o risco de perda de rendimento na velhice (ver o livro de Mitchell Orenstein, “Privatizing Pensions”). Neste esquema, os ajustamentos são sempre feitos do lado das pensões.

Após as eleições de Outubro, num contexto de maioria relativa e fortíssima pressão da UE para um acordo à direita, este é certamente um dos assuntos em que será exigido consenso. O programa da PaF já refere a necessidade do consenso. O actual silêncio do PS é sintoma de abertura. Sem discussão pública, em estado de necessidade, se nada fizermos o que nos espera é um golpe de Estado nas pensões.

Jorge Bateira
Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas
Opinião Jornal i 07.08.15