Greve

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Uma greve pela justiça, pelo Estado social, contra a possibilidade de se cortarem salários, contra a brutalidade de trabalho que ficou nas mãos de quem ainda está empregado. É isto que creio, se anuncia na justiça. Esperemos desta vez não ter que ouvir os outros trabalhadores dizer que estes, do sector da justiça, são corporativos ou privilegiados.
O salário corresponde em Portugal, salvo raras excepções, aquilo que é necessário para reproduzir aquela força de trabalho. O facto de alguém não ser miserável e não ter que «roubar», legitimamente, electricidade, por exemplo, ou só comer pão para estar vivo, ou deixar de passear, viver como humano digno e não como animal acossado, não faz dele um privilegiado mas apenas um trabalhador que mesmo se ganhasse mais, dentro de um tecto razoável, estaria a ganhar aquilo que é fruto do seu trabalho, aqui visto como trabalho colectivo, riqueza social.
Em Portugal não é privilegiado quem ganha 3000 euros – porque esse valor é comportado pelo conjunto da produção nacional, calculando a riqueza produzida e a produtividade do trabalho. É privilegiado quem vive à sombra de monopólios privados protegidos pelo Estado, como a EDP; quem gere empresas em que o Estado o Estado assume os deficits ou a recapitalização, como a PT; empresas que usam força de trabalho paga pela segurança social, como sectores da Banca; empresas que vivem de contratações milionários, como a Mota Engil no Porto de Lisboa ou nas autoestradas; empresas que não assumem riscos porque sorvem impostos, como o Grupo Melo e o Grupo Espírito Santo na saúde. Tudo isto se traduz em privilégios, benefícios, que estão espelhados na distribuição de dividendos, que em certos casos alcançam os milhões de euros de «salário» por ano.
Já não há nada que justifique a ignorância do que se está a passar no país. Esta greve da justiça não é só por salários (que podia ser, e seria, claro, justa) mas é uma greve que assume uma linguagem lindíssima – o termo é mesmo este, creio -, de defesa de uma «sociedade mais justa». É uma greve que coloca os magistrados na luta pelo Estado social, contra o corte de salários, pelo acesso de todos à justiça, estou a citar.
Esquecemos muitas vezes que o Estado Social também é o acesso à justiça, à não arbitrariedade. O Estado pode devolver os nossos impostos e contribuições em saúde, em educação, em segurança social, justiça, habitação, cultura, espaços verdes, transportes públicos. Pode devolvê-los sob a forma de polícias, balas e repressão. Pode devolvê-los sob a forma de fiscalização para arrecadar ainda mais impostos. Pode nem os devolver, mas é só enquanto o permitirmos.
Raquel Varela