Imprevisibilidade da vida e da liberdade

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Destruir os suportes jurídicos que sustentam a estabilidade e segurança económica e social é atentar contra a liberdade

Desde sempre, os homens procuraram controlar e vencer a imprevisibilidade da vida.

Procuraram – e procuram – para tanto apoio na religião ou nas ciências.

Os esforços da medicina, da economia e do direito, foram sempre direcionados no sentido de precaver a vida de cada um de nós e da sociedade contra factores imprevistos que a condicionassem de forma irreversível.

Impossibilitados de vencer a morte, os homens sempre buscaram dirimir a angústia com o seu futuro, quer enquanto indivíduos, quer enquanto corpo social.

A luta dos homens pela construção de uma sociedade mais justa teve, também nessa busca de estabilidade individual e colectiva, uma forte motivação.

A riqueza de que uns poucos desfrutavam e a tranquilidade que, mesmo relativa, ela assegurava aos que a detinham, servia de paradigma de estabilidade aos que, dela desprovidos, tinham de ir penando ao sabor de circunstâncias que, de maneira alguma, podiam controlar.

A luta por uma ordem legal preestabelecida – pela legalidade da governação – contra todos os arbítrios constituiu, por isso, uma conquista fundamental na estabilidade social: a ela chamamos, hoje, estado de direito.

Depois das I e II Grandes Guerras, os estados socialistas e o estado estado social emergiram na Europa como resposta social e política às angústias de imprevisibilidade económica a que a vida da maioria das pessoas tinha até então sido sujeita.

As sociedades de relativo bem-estar em que nos habituámos a viver e que costumamos louvar, como modelo de estabilidade e segurança, assentaram sempre numa forte normatização legal dos factores de imprevisibilidade da vida económica e social.

Nos últimos anos, essa normatização passou também a regular aspectos que respeitam à defesa do meio ambiente e dos bens comuns, que todos necessitamos de preservar para permitir a sobrevivência das gerações futuras.

Prever a vida e caminhar nela com entusiasmo e alegria supunha – supõe – ter garantias de apoio na saúde, de emprego, de uma remuneração decente, de tempos livres e para a família, de educação para os filhos, de habitação saudável e de segurança na doença, na reforma e na velhice.

A regulação destes aspectos de vida permite, além do mais, níveis de independência e de liberdade individual e colectiva: a base indispensável de uma cidadania activa e progressiva.

Essa cidadania activa é o verdadeiro cimento da democracia e da liberdade.

Hoje, porém, assiste-se, em muitas partes do mundo, a uma tentativa de desregulamentação geral dos suportes económicos e sociais que edificaram as sociedades que foram capazes de solucionar muitas das suas injustiças mais gritantes em liberdade.

Esquecem-se os que a isso ambicionam que tal desregulamentação, mais do que maior riqueza para todos – o que as estatísticas, aliás, desmentem – apenas fomenta a desordem e a insegurança.

A imprevisibilidade das nossas vidas é também uma das estratégias do terrorismo fundamentalista.

Tornar imprevisíveis os nossos dias, fomentar o medo e a insegurança são os seus objectivos.

A poucos de nós – salvo aos oportunistas primários, a que, por pudor, chamamos populistas – lembrou, todavia, restringir gravemente as liberdades e garantias para combater o terrorismo: isso era fazer o seu jogo.

Destruir os suportes jurídicos e, assim, as condições de estabilidade e segurança económica e social, alicerces das liberdades de que gozamos, apenas fomenta sujeições, humilhações e imprevisibilidade.

Fazê-lo é também criar medo e insegurança; é atentar contra a liberdade.

António Cluny
Jornal i 05.09.2017