Já Passou?

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Já Passou?

Sob este título (Expresso 04.05.2013, Economia, pág. 12), que pretende exprimir a angústia dos “jovens turcos” que se consideram vampirizados pelos seus progenitores, o Professor João Duque, director do Instituto Superior de Economia e Gestão, instituição que tem a seu cargo a formação de boa parte dos nossos futuros economistas, descreve o que considera ser o pesadelo que ensombra a existência das novas gerações. 
E qual o perigo que os ameaça nesse seu pesadelo? Obviamente, o fantasma das nossas pensões, causa directa do desemprego e insegurança das suas vidas inocentes. Chegam até nós, que nos críamos protegidos dentro da concha das nossas faustosas existências, os lamentos dos pobres jovenzinhos, desesperados enquanto não abrem mais umas vagas de assessor, acicatados pelos seus chefes de quina ou de castelo. 
«(…) O sistema actual [de pensões] faz da geração subsequente o sustento vital das reformas da geração presente. Os atuários, se os há, erram descaradamente nas contas, ou é-lhes pedido que assumam alguns pressupostos desadequados e os responsáveis políticos iludem-se e iludem-nos na ideia de que o que descontamos nos é devido. 
Por isso, quando se privilegia o trabalho [rendimento?] dos mais velhos em desfavor do trabalho dos mais novos cavamos a própria sepultura. Os mais novos são os mais audazes, os mais bem preparados para suportarem as alterações da vida , os mais adaptáveis e os que mais arriscam porque têm vida para recuperar em caso de perda. Os mais novos são a força viva das empresas. É na juventude que se desenvolvem os nossos projectos de vida. O padrão de vida e consumo dos mais novos difere do dos mais velhos. O trabalho dos mais novos dá-lhes confiança para a assunção de responsabilidades de longo prazo (casas, equipamentos, família). Viver dos mais velhos retira-lhes a visão e a esperança de futuro. E, além disso, só eles se reproduzem! 
E como são jovens partem, deixando os mais velhos a viverem do nada. Olhem para as pequenas aldeias de Portugal e vejam o que foi o seu caminho até à extinção. Portugal pode repetir-se nesse modelo suicida. Do ponto de vista social, é preferível empregar-se as gerações novas, mesmo que as mais idosas tenham menor rendimento, que o seu contrário.» 
Vejam bem a dimensão da nossa iniquidade: alimentamo-nos das novas gerações transformando-as em “sustento vital” para nós mesmos. Como Cronos, alimentamo-nos da nossa prole, canibalizamos o seu futuro. E com que fundamento? A absurda ilusão “de que o que descontamos nos é devido”. Como é possível tal perversidade? Então queríamos que o que pagamos nos fosse devolvido? Já devíamos ter aprendido, na nossa provecta idade, que o contrário é que é verdadeiro: só é “devolvido” o que não foi pago. Pois não abundam os exemplos desta evidência empírica? E mais do que uma evidência empírica, trata-se até de uma prática sancionada por e conforme aos mais elevados princípios: “a todo aquele que já possui, será dado mais ainda. Mas àquele que nada tem, será tirado até mesmo o que tem.” 
Segue-se um comovente panegírico das gerações mais jovens. Pode resumir-se a isto: só eles são produtivos. São os mais bem preparados, os mais adaptáveis, os mais criativos, os mais ousados, só eles possuem um futuro. E, atenção, são fecundos! Um exército de poedeiras e galos de capoeira, esperando justamente serem promovidos a galifonas e galifões. A ciência vem assim, em socorro das justas aspirações dos inocentes jovenzinhos. É a própria lei da selecção natural e da sobrevivência dos mais aptos que lhes dá razão. No fundo, a velhice é uma aberração que contradiz a lei natural. Protegê-la é mesmo uma prática anti-científica. Viva a eugenia! Assegurar aos velhos uma existência condigna é um desperdício. Porém, não exageremos. Não é necessário exterminá-los. Basta que tenham menor rendimento, e com isso beneficiar os mais novos, a fim de devolver a estes “a visão e a esperança de futuro”. 
Não admira, face a um tal cenário, que o choro e ranger de dentes destes “jovens turcos” e respectivos aprendizes venha perturbar a paz das nossas “zonas de conforto”. Não terá sobrado em nós uma réstia de consciência, “posta em sossego, dos [nossos] anos colhendo doce fruito”, para que nos apiedemos dos pobrezinhos? Pois não foi sempre o futuro dos filhos e do país que nos moveu? Sentimo-nos invadidos por uma vaga onda de ternura. 
E é nesta altura que acordamos. Não de um pesadelo, mas do sonho cor-de-rosa de uma velhice regalada que vendem por aí. Olhamos em volta para a nossa zona de conforto e que vemos? Que ela se transformou afinal num campo de refugiados onde pais e filhos e netos procuraram asilo, asilo político, sim! Abrigo para a perseguição movida por este desgoverno contra tudo o que mexe e procura sobreviver. Pais cujas pensões já não asseguram a sua independência, filhos desempregados e incapazes de sustentar as suas próprias famílias, netos cuja subsistência e formação precisamos de apoiar, tal como antes o fizemos relativamente aos nossos filhos, e os nossos pais relativamente a nós próprios. 
Endurecemos o nosso coração e encerramos os ouvidos aos lamentos que nos chegam de quem nos rouba as pensões, a esperança, a segurança, o emprego, a saúde, a educação. Aos lamentos deles e das suas crias políticas. Tais lamentos nunca contaminarão as nossas famílias. São lamentos de gente sem pátria e sem mátria [saudade, Natália!] Gente sem família, apenas cúmplices. Quebramos todos os espelhos de ilusões e só queremos ver a realidade. Ou o pesadelo, o que vai dar no mesmo. Mas virá o dia em que seremos nós a poder dizer JÁ PASSOU! 
No dia da Mãe, 5 de Maio de 2013 (no teu dia, Mãe, que nunca foste uma “despesa”, mas sempre uma dádiva)

Luís Gottschalk