Mitos, narrativas e muita lata

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Otto von Bismark, o chanceler de ferro do império alemão no século XIX, dizia que “nunca se mente tanto como em véspera de eleições, durante a guerra ou depois da caça”. O diagnóstico de Bismark, quase confessional, é o retrato perfeito do último debate quinzenal da legislatura, em que um primeiro-ministro, de forma contumaz, insiste na narrativa dos “mitos urbanos” para negar a realidade.

Não sei se inebriado pelos resultados de uma sondagem, Pedro Passos Coelho atreveu-se a insultar a inteligência de um país inteiro. Que é mito que tenha aumentado o IVA, que é lenda que as pessoas com rendimentos mais baixos tenham sido afetadas pelos cortes, que é fantasia a redução do rendimento social de inserção ou do complemento solidário para idosos, que é efabulação que alguma vez tenha incentivado à emigração seja de quem for.

É certo que estamos a três meses de ir às urnas, em plena guerra de propostas e programas e que cada dia é de caça ao voto. Mas isso não pode servir de desculpa para que, com a maior desfaçatez, se cumpra a confissão de Bismark.

Recuemos no tempo. Depois de, lá está, em plena campanha eleitoral, ter dito que era um disparate pensar que o seu governo cortaria no 13.º mês, eis que isso aconteceu mesmo mal se apanhou em São Bento. E nem sequer os salários de 485 euros líquidos, elevados portanto, escaparam à tesourada governa-mental. Mas, mais do que isso, o rendimento das famílias, de todas as famílias, foi empobrecido por via das alterações no IRS, nos impostos indiretos ou em prestações sociais como o abono de família.

Já no que aos pensionistas diz respeito, podemos ser habilidosos com a semântica ou usar das “malabarices” que quisermos com as palavras, o facto é que, nem mesmo as reformas mais baixas se livraram da fúria austeritária. É difícil, para não dizer impossível, explicar a uma pensionista que aufere 249 euros por mês que tirar-lhe os 18 euros de complemento solidário para idosos não é um corte de rendimento. Mas a penalização aos mais desfavorecidos não se ficava por aqui. Não fora a intervenção dos juízes do Tribunal Constitucional, esses malandros, e em 2013 e 2014 nem o subsídio de doença ou de desemprego escapavam a um desbaste de 6% e 5% respetivamente.

Queixou-se também o primeiro-ministro da falsidade dos que o acusam de ter aumentado a carga fiscal. Garante que não é verdade porque o governo se limitou a ajustar o cabaz de bens e serviços que estava fixado. Tudo não passa, portanto, de um gigantesco equívoco, porventura semelhante ao do enorme aumento de impostos reconhecido por Vítor Gaspar. Ou seja, acabar com a taxa intermédia de IVA e reclassificar para a tributação máxima a eletricidade e a restauração, só para dar dois exemplos, não é, na narrativa de Passos Coelho, subir impostos.

Por fim, o “mito urbano” dos incentivos à emigração. Já não é, de resto, a primeira vez que o primeiro-ministro tenta reescrever a história. Em dezembro de 2011 dizia que “Angola, mas não só Angola, o Brasil também, tem uma grande necessidade ao nível do ensino básico e do ensino secundário de mão-de-obra qualificada e de professores. Sabemos que há muitos professores em Portugal que não têm nesta altura ocupação e o próprio sistema privado não consegue ter oferta para todos. Nos próximos anos haverá muita gente em Portugal que ou consegue nessa área fazer formação e estar disponível para outras áreas ou, querendo-se manter, sobretudo como professores, podem olhar para todo o mercado de língua portuguesa e encontrar aí uma alternativa”. Enfim, estamos conversados.

Bem podem vir agora as benesses eleitoralistas, ele é cheques formação para desempregados ou milhões para abreviar as listas de espera de cirurgias, que não apagam a manifesta insensibilidade social de Passos Coelho. E perante isto, como escrevia ontem Pacheco Pereira, só há uma maneira de reagir: é dizer ao primeiro-ministro, cara a cara, que ele está a mentir. Quem não o fizer e insistir na oposição tíbia dos salamaleques, não só por isso mas também por isso, não merecerá a confiança dos portugueses.

Nuno Saraiva
Opinião DN 21.06.2015