Neste bar celebra-se a resiliência de quem sobrevive ao ácido sulfúrico

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Imaginemos um bar cheio de pinta, onde se ouve boa música, com wi-fi gratuito, onde se podem pedir snacks como batatas fritas e sanduiches tão elaboradas que mais parecem uma refeição, ou ficar apenas à conversa com os amigos, enquanto se bebe um chá ou um café na esplanada. É isto que todos os dia se passa nos estabelecimentos da Sheroes Hangout, uma cadeia de bares que já abriu portas em quatro cidade indianas, ora na rua, ora em centros comerciais. Mas há um pormenor que a distingue de projetos semelhantes: todos estes estabelecimentos são geridos por mulheres que sobreviveram a ataques com ácido sulfúrico.

Já esta semana tínhamos falado aqui deste tema por causa da maravilhosa participação de Reshma Qureshi – que na adolescência também foi alvo de um ataque do género – na Semana da Moda de Nova Iorque. Uma participação altamente simbólica, se pensarmos que estes mesquinhos ataques com ácido são, regra geral, uma forma de vingança à tomada de decisão de uma mulher, e perpetuados com o intuito de lhe destruir qualquer oportunidade de uma vida normal em sociedade. Ver Reshma desfilar num dos mais prestigiados eventos de moda foi quase uma forma de gritarmos ao mundo que não são ataques destes que vão obrigatoriamente condenar as suas vítimas ao isolamento. E uma forma de encorajar as sobreviventes a retomarem os seus caminhos e a acreditarem que as suas caras podem ter ficado desfiguradas, mas a vida, essa ainda não acabou.

O projeto Sheroes Hangout vem cimentar esta ideia, dando às sobreviventes não só um espaço onde assumidamente sabem que são clientes bem-vindas e aceites, sem olhares incomodados ou comentários inconvenientes, mas também oportunidades de emprego, outro dos grandes problemas que estas pessoas enfrentam. Todas as mulheres que dão vida a cada um destes bares passaram por estas situação extrema de violência no seu passado, desde as empregadas de mesa às cozinheiras, às responsáveis pela limpeza e, também, a gerente. Tal como o nome indica, neste espaço todas elas são heroínas dos tempos modernos. E merecem ser celebradas pela sua resiliência e coragem. A melhor forma de as celebrar? Dando-lhe espaço para viverem uma vida normal.

NÃO É UMA QUESTÃO DE RELIGIÃO, É UMA QUESTÃO DE MACHISMO

Se por um lado se incita a que estas mulheres aprendam a lidar com a sua nova imagem corporal e a sentirem-se aceites e confiantes em espaço público, por outro também se incita a que quem não vive de perto esta realidade possa aprender a lidar com ela sem a repulsa ou pena iniciais que muitas vezes uma cara desfigurada suscita. E com a oportunidade assumida de poderem fazer perguntas, sem constrangimentos. O projeto tem por trás uma ação de crowdfunding promovida pela Chhanv Foundation, gerida por Laxmi Saa, uma verdadeira mulher coragem e, provavelmente, uma das mais famosas ativistas ligadas aos ataques com ácido. Se no início havia quem tivesse dúvidas sobre a adesão aos bares Sheroes, hoje não há dúvidas quanto ao seu sucesso: entre os quatro espaços passam diariamente mais de 500 clientes.

Ainda na segunda-feira alguns leitores discutiam aqui o poder da religião nestes crimes. Eu insisto na questão da cultura violenta e machista que ainda predomina no mundo dos tempos de hoje. Que, sim, também muitas vezes tem a religião como ponto de partida, mas seria ingénuo e redutor acharmos que esse é o único factor que leva a que as mulheres ainda sejam vistas como pessoas de segunda em tantas sociedades. Seria muito fácil dizer que isto acontece porque estes criminosos são muçulmanos, mas se pusermos a preguiça mental de lado e olharmos para dados oficiais, pelo menos conseguimos perceber que este tipo de crime acontece em países distintos, com religiões diferentes: embora a Organização Mundial de Saúde ainda não tenha dados globais disponíveis sobre a sua dimensão, sabe-se que são mais comuns em países como Bangladesh, Camboja, China, Jamaica, Nepal, Nigéria, Paquistão, África do Sul e Uganda.
Outra coisa que também temos de ir desmistificando é o facto de estas mulheres não serem apenas vítimas, mas também, e acima de tudo, sobreviventes. Foram alvo de ataques mesquinhos e grotescos, mas não é o que daí resultou que as define. As cicatrizes que trazem no corpo são apenas o registo visível da cultura machista que ainda subordina a mulher ao homem, que a castiga quando esta impõe o seu livre arbítrio e que a vê como um alvo fácil e óbvio em caso de, por exemplo, disputas familiares. Com a palavra “honra” a ser usada como justificação máxima para algo que não é mais do que um crime. Que se faça justiça: não são as vítimas deste crime hediondo que devem ser isoladas da sociedade, mas sim os criminosos que o perpetuam, ano após ano.
Paula Cosme Pinto
Expresso 16.09.2016