O Cisma Grisalho

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Um Governo que não respeita os velhos não pode fazer-se respeitar. Em Dezembro passado, talvez ainda se recordem, Passos Coelho disse que os reformados mais bem pagos «descontaram para ter reformas, mas não aquelas reformas», o que representava, para começar, um escasso conhecimento do sistema contributivo; e, para acabar, uma crítica directa e violenta ao Presidente da República e à presidente da Assembleia da República.
Que os mais altos titulares prefiram auferir as reformas que já tinham do que os salários dos seus cargos, porque são mais chorudas, parece-me, para usar uma expressão eufemística e muito lusitana, uma tristeza. E um péssimo exemplo, também. Mas não é isso que está agora em causa.
Trata-se, como sintetizou Paulo Portas com aquele seu talento para criar expressões de impacto, de um «cisma grisalho». Um cisma, porque põe os portugueses de maior idade contra os mais novos, ainda por cima num tempo em que, por estarem condenados à precariedade laboral ou ao desemprego, os de meia-idade mais precisam dos velhotes: do seu apoio moral, da sua serenidade e das suas poupanças.
Os jovens cresceram com os programas Erasmus e com uma escola pública progressivamente mais apetrechada – as mentiras que se têm escrito sobre a falta de qualidade da educação em Portugal bradam aos céus e às estatísticas – e têm facilidade em mover-se pelo mundo.
A geração intermédia, que tem casas para pagar, filhos adolescentes e pais doentes, que não cabe nos ‘projectos’ nem nos prémios para jovens, está completamente abandonada.
Penalizar os velhos, destruir-lhes as economias e as esperanças, é atirar mais uma pedra não aos seus netos – que, em última análise, virarão as costas a Portugal – mas aos seus filhos, que lutam diariamente para equilibrar o país, as contas e as vidas dos outros.
São esses, em rigor, os portugueses grisalhos: têm metade da cabeça branca e a outra metade escura, como as noites em que não dormem a pensar no que terão de fazer para merecerem chegar à velhice.
A retroactividade é a recusa de qualquer modelo de confiança. Significa que todos os compromissos podem ser deitados ao lixo, todas as regras podem ser queimadas.
A pura possibilidade de recurso a mecanismos de alteração nas reformas estabelecidas – chame-se-lhes taxa de sustentabilidade, mesada para trinetos ou ajudadeira, como se dizia no feudalismo – é, desde o momento em que é concebida, uma traição.
E arrasta um problema suplementar, no qual me parece que os alvitreiros desta hipótese nem sequer cuidaram: mina em definitivo a credibilidade da política. É com ‘ideias’ destas que se cria o cenário e o terreno onde florescem os ditadores salvíficos, despojados do manto ‘sujo’ das ideologias e movidos somente pela lascívia do mando.
Não creio que nenhum dos actuais governantes tenha este perigosíssimo perfil – embora o actual primeiro-ministro tenda a considerar-se o mártir-mor da redenção nacional. Compreendo que lhe seja difícil encarar o dia-a-dia de outra maneira. Mas da traição, por muito que se diga e chore, não há regresso.
Inês Pedrosa