O estatuto da União Europeia

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O processo da União Europeia ameaça não permitir encontrar apoio nos teóricos das origens e progresso, pelo menos ocidentais, da ordem política. Isto porque o que avulta a perplexidade dos observadores é a divergência, sem conceito estratégico, entre o sonho dos europeístas que conseguiram desencadear o processo e a incapacidade em que geralmente se encontram de racionalizar a articulação dos centros de poder formalmente definidos, ainda embaraçada pela dúvida de que a palavra decisiva não seja de nenhum deles. De todos os europeístas inspiradores destaco Richard de Coudenhove-Kalergi, ativo desde que em 21 de julho de 1922 publicou o documento intitulado “A Questão Europeia”, porque é inquietante a comparação com intervenções de responsáveis atuais, com peso na estrutura do aparelho, como são Juncker, presidente da Comissão Europeia, e Jeroen Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo: a conclusão é a urgência de rever o estatuto da União, para o repensar, sem abusar do “quando” de que falou o padre António Vieira.

Não se trata apenas da orientação doutrinária, que evita citar, mas não omitir, as cogitações de Hayek sobre o primado do direito, como ele o entendia, a orientar a formação de uma “grande sociedade”. O resultado diariamente mais visível é ter responsáveis a confundir a União com um Estado, que não é, e eles próprios como distantes governantes de governos. É alarmante que um presidente da Comissão considere que pode aplicar seletivamente sanções, consoante a importância que em seu parecer atribui ao país: entre a França e Portugal não tem dúvidas sobre o seu poder de escolha para amnistiar ou punir. Esta liberdade assumida pelo presidente Juncker, numa União a funcionar, levaria a meditar no instituto do impeachement, não pelo dito, mas para evitar o agravamento do esquecimento dos princípios do europeísmo milagrosamente implantado pelos que tinham experiência das consequências de ferir a igualdade das nações com a hierarquia dos Estados.

Quando a questão do globalismo não conseguiu ser suficientemente aprofundada e compreendida, pela sua complexidade inesperada de interdependências de centros de poder nem sequer conhecidos, mesmo com as intromissões arrojadas dos meios de comunicação, a preservação da identidade ocidental na comunidade das áreas culturais, étnicas, e políticas, não é servida por esta desorientação, nem a Europa voltará a poder chamar-se “a luz do mundo”. Ficamos a dever a Talcott Parsons (1951) a busca de uma disciplina que ultrapassa a interdisciplina, a qual abrangesse um objeto com parcelas de economia, sociologia, ciência política, e até antropologia, que consentisse alcançar a compreensão articulada e verificada da evolução dos povos e sistemas políticos.

A perspetiva da unidade ocidental, e nela da Europa, foi em parte animada por esta esperança de fortalecer a capacidade de orientar, por decisões de estadistas, a reformulação de um “mundo único” governado como “a casa comum dos homens”. O conceito assentava na certeza da pluralidade de fatores, alguns identificados em relação a alterações históricas estudadas, mas não é possível considerar que responde a essa inquietação a certeza de caminho único que anima os decisores da União, para enfrentar a crise económica e social que divide a unidade dos povos europeus, invocando o neoliberalismo simplificado em orçamentalismo, e não tendo melhor inspiração do que o recurso às sanções seletivas, de que os regimes extrativos deixaram má história. Este caminho, que vozes até mais poderosas do que as dos titulares dos cargos oficiais da União, como é com frequência a do ministro alemão Schäuble, consideram único, apenas se traduz em ignorar os objetivos sociais do projeto dos europeístas, e ignorar os riscos que cresceram na circunstância que rodeia a Europa. Não é necessário tornar mais inquietante esta falta de estadistas, para guiar os europeus, destacar a necessidade sentida pela NATO de proceder às reformulações do seu dispositivo. Mas implica que a Europa precise de admitir que tem “circunstâncias” que não domina, e que toda a divisão interna lhe retira a capacidade de contribuir para um mundo realmente “único”.

Tudo evidencia que infelizmente a época cada vez mais demonstra que os fatores políticos são exigentes de prioridade atenta, como pressuposto da paz internacional para que o desenvolvimento económico sustentado possa traduzir-se numa segurança social para todos. Sendo de experiência histórica que a falha de segurança social para os povos está frequentemente entre as causas da insegurança interna e externa, nesta data parecendo ser esse o perfil do turbilhão que atormenta a África do Cabo ao Cairo, que atormenta o Mediterrâneo, que dramatiza a movimentação das migrações.

Uma circunstância que não consente o adormecimento da decisão que no século XIX apontou para as medidas do Estado social, mas que chegou visivelmente a um declínio perigoso para a paz e segurança, uma desatenção que nos efeitos tem seguramente que ver com a hierarquia antiga dos Estados, mas sem geografia que proteja os pacíficos, nem os menos poderosos nem sequer impede que o fraco tome com êxito a iniciativa da agressão. De facto, a limitação das capacidades do poder soberano não são limitações do poder e dever de seguir e participar na reconstrução da ordem internacional, ou de contribuir ativamente para pôr em execução efetiva os normativos e modelos, existentes, mas em pousio. A principal exigência é que a desatenção não esteja a facilitar o alastramento internacional do turbilhão anárquico.

Adriano Moreira
Opinião DN 08.06.2016