O estertor europeu

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No livro Un president ne devrait pas dire ça… escrito por dois jornalistas franceses, François Hollande, esse grande europeísta e expoente do atual estado da social-democracia europeia, revela que armou uma moscambilha para permitir à França não cumprir os limites do défice. A coisa fez-se assim: a França sabia que não cumpriria os ditos limites e martelava as previsões de forma a parecer que os ia atingir. Não leu mal, não confundi o presidente francês com nenhum governante grego. Não, não estou a trocar esses horríveis aldrabões de contas públicas, esse povo de calões, com os sérios dirigentes políticos franceses ou com o honesto povo trabalhador gaulês.

Voltemos à moscambilha. Em 2014, era tão evidente que não se iam cumprir as previsões, que o esquemático governo grego, perdão, o empenhado europeísta governo francês deve ter tido um rebate de consciência. “Pronto, vamos, pelo menos, ser minimamente honestos e dizer que não vamos cumprir.” Aí, a Comissão Europeia, a entidade que tem de assegurar que os tratados são cumpridos, essa espécie de governo europeu que deve garantir que todos os povos da União Europeia devem ter um tratamento justo e equilibrado, terá dito que “não senhor, continuem a mentir com quantos dentes têm na boca. É que se vocês disserem que não vão respeitar o acordado, essa raça de preguiçosos portugueses, gregos, espanhóis, italianos e outros que tais quererão um tratamento igual, e isso é impensável”. As palavras não terão sido estas, mas o espírito foi. Sabendo que nessa altura o presidente da Comissão era o grande facilitador Barroso, mais verosímil se torna a história. Mas, claro, a coisa continuou com Juncker.

Mesmo pensando que Hollande não será propriamente um exemplo de credibilidade, sendo o que conta verdade, perante uma trafulhice destas dimensões, em condições normais, estaríamos a viver uma crise gravíssima, não ficaria pedra sobre pedra. O inefável Juncker, o grande facilitador Barroso e as suas equipas teriam de responder por participação numa fraude, os franceses seriam condenados a graves sanções e todos os tratados seriam postos em causa. Por outro lado, os líderes e ex-líderes dos países que foram condenados a enormes sacrifícios em nome da boa saúde orçamental estariam a caminho de Bruxelas para que fosse reposta, pelo menos, alguma justiça. No mesmo sentido, as pessoas a quem foram retiradas pensões, cortados salários, as que foram atiradas para o desemprego ou para a emigração estariam revoltadas e manifestar-se-iam.

Alguém leu ou ouviu o que quer que fosse de atuais ou ex-primeiros-ministros, por exemplo portugueses e gregos, mas não só ? Alguém viu personagens politicamente relevantes a vir a terreiro pedir, ao menos, explicações – nota de elogio para Paulo Rangel? Editoriais? Grandes pensadores europeus? E alguém sentiu algum incómodo popular?

Claro que não e ninguém estaria à espera que houvesse grandes sobressaltos. É que, mesmo tendo a Comissão negado o envolvimento nesta golpada, tudo soa a normalidade, tudo parece mais do mesmo. Não falharam várias vezes a Alemanha e a França os limites do défice? Não tem, reiteradamente, a Alemanha um superavit comercial que excede largamente o permitido? Alguém ouviu falar em sanções para estes países? Mais uma vez, claro que não. Como é que se explica a um português ou a um grego que ele tem de fazer sacrifícios enormes mas um francês não? Não se explica. E não se explica porque hoje a Europa já não é um projeto de solidariedade, um projeto que tem como objetivo manter a paz entre os seus povos e em que se acredita que para se obter essa paz é preciso coesão social, ajuda mútua, trabalho em comum. E como base dessa ideia estava a democracia.

Uma democracia tem de ter legitimidade popular e poderes que se interligam equilibrando os poderes. Nada disso acontece nesta União Europeia. Hoje, é apenas um projeto em que os grandes países fazem o que querem, em que entidades como o BCE tem um poder desmesurado sem qualquer mandato, sem qualquer fiscalização popular, em que fezadas sobre este ou aquele povo se sobrepõem a qualquer conteúdo político e ideológico. Os tratados, como se vê por mais este exemplo, são letra morta ao serviço dos interesses políticos dos mais fortes.

Nem líderes nem as tais figuras relevantes se revoltam ou sequer lutam porque ou foram cúmplices ou acham que já não vale a pena. Os povos já não se indignam porque pura e simplesmente já não acreditam, porque sentem que tudo foi feito nas suas costas. E se durante algum tempo não se aborreceram com a falta de democracia e com o facto de não serem ouvidos foi porque havia abundância. É sempre a mesma história, só percebemos que devíamos ter olhado para as letras pequeninas do produto que nos estavam a dar quando já estamos irremediavelmente doentes.

Mais revelações destas se seguirão. Agora já não é preciso esconder ou disfarçar. Portugal e os países economicamente mais débeis estão presos numa teia em que para trás é a morte rápida e certa, e para a frente a lenta mas também certa. Continuaremos a ser alimentados por um tubo muito fininho que não nos permite mexer, quanto mais estrebuchar reclamando o nosso pedaço do sonho europeu, de democracia e de justiça.

Pedro Marques Lopes
Opinião DN 06.11.2016