“Ó filho”

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Em Portugal, os jornalistas podem ser duros com os políticos durante as entrevistas, interrompê-los a meio de respostas e mesmo entrar em debate quando, supostamente, deveriam estar a tentar obter esclarecimentos sobre os atos e opiniões deles. Salvo exageros que por vezes acontecem, nada a apontar. Estranho é que o mesmo estilo não seja utilizado quando se entrevistam pessoas com efetivo poder de outras áreas da sociedade. Chega, por exemplo, a ser constrangedor ver a reverência com que empresários ou gestores de grandes empresas são tratados, em entrevistas, pela esmagadora maioria dos jornalistas económicos. No mesmo sentido, alguns jornalistas de Economia, são rapidíssimos a atacar as eventuais falhas de políticos, mas esquecem-se rapidamente das liberalidades de algumas empresas para com eles. E vale a pena lembrar as declarações e atos de profunda admiração a empresários e grandes gestores – os exemplos de Ricardo Salgado e Zeinal Bava são gritantes – que, mal caídos em desgraça e no espaço de meia dúzia de semanas, são substituídas por acusações de autoria de todos os males.

Ainda há pouco tempo, um dos maiores empresários portugueses, Soares dos Santos, deu uma entrevista onde, entre outras pérolas, disse (cito de memória) que só investia em Portugal porque era português e a dada altura dirigiu-se ao jornalista com um paternalista “ó filho”.

O citado cavalheiro não vive, como é do conhecimento geral, com dificuldades económicas. Aliás, não me parece que se possa queixar propriamente de um país e de uma comunidade que lhe proporcionou, e à sua família, a possibilidade de fazer uma imensa fortuna – não será preciso lembrar todo o imenso mérito, trabalho e visão que os levou a construir um extraordinário grupo empresarial. Escusado será dizer que nenhum dos dois jornalistas se lembrou de lhe recordar isso ou perguntar-lhe se não achava que estava, digamos assim, a cuspir na sopa.

O mesmo Soares dos Santos defendeu uns dias mais tarde que manter os nossos gestores com salários iguais aos de qualquer parte do mundo é essencial para mantermos por cá os melhores. Não duvido. Há, no entanto, um detalhe que perturba este raciocínio: por que diabo pagando ao nível dos melhores do mundo, temos níveis tão baixos de produtividade? Não são os gestores responsáveis pela organização do trabalho, pelos métodos de produção? Ou será que temos de responsabilizar o Estado por todos os problemas de produtividade? Porque será que os trabalhadores portugueses, lá fora, são tão produtivos e aqui são tão improdutivos? Aqui dá–lhes a preguiça, é? Também fica por saber porque devem ser os gestores pagos ao nível dos mais bem pagos do mundo e os trabalhadores não. Que raio de lógica há nisso, sabendo que a disparidade salarial entre trabalhadores e gestores em Portugal é das mais elevadas no mundo?

Alguém leu ou ouviu um jornalista económico a refletir sobre estas questões no seguimento da entrevista ? Pois…

Como há uma falta de reação particularmente irritante, até patética, quando os empresários falam dos seus investimentos. O anúncio é sempre feito de forma a parecer que estão a fazer um enorme sacrifício e que, no fundo, aquilo é uma espécie de obra de beneficência que estão a fazer. Não, não é. Os empresários fazem aquele investimento com o fito de ganhar dinheiro, e quanto mais melhor. E tudo bem, excelente mesmo. Eu acredito numa organização política e económica em que o investidor arrisca e deve ser compensado por isso, se for competente, se cumprir as regras do jogo e se trabalhar afincadamente. Como acredito que o Estado deve fazer todos os possíveis para criar condições para que o privado possa prosperar, limitando a burocracia, tendo cargas fiscais justas (não as exageradas que temos). O que é insuportável é assistir a empresários, sobretudo os que têm impérios e ganham muito dinheiro, a tentarem convencer-nos de que apenas investem porque são uns queridos. Quando criam empregos, quando geram trabalho para outras empresas, fazem-no porque acreditam que isso lhes vai trazer mais lucro e mais dinheiro. E, repito, ainda bem, venham muitos investidores dispostos a fazer mais-valias com o trabalho alheio e com o capital. Viva o capitalismo que tanto bem-estar trouxe aos povos. Peço desculpa ao leitor por estar a invocar La Palisse, mas há alturas em que parece que estão a gozar connosco quando nos querem fazer crer que investimentos são uma espécie de esmolas.

A vulnerabilidade, neste momento da nossa história, dos media ao poder económico – incomparavelmente maior do que ao poder político – coloca problemas muito complicados, mas, claro está, não podem levar à falta de escrutínio, à lamentável bajulação ou mesmo à promiscuidade.

Numa comunidade saudável não devem existir poderes acima do escrutínio e da crítica. O político tem vários mecanismos instituídos de controlo, o económico tem bem menos. O papel do jornalismo é assim de uma importância vital. É que a crítica e o escrutínio não servem apenas como mecanismo de controlo, servem também como fator que pode contribuir para a melhoria de desempenho das empresas.

O que demasiadas vezes esquecemos é que numa sociedade democrática equilibrada o escrutínio e a crítica são fundamentais em todos os setores em que há um efetivo poder. E sim, para que esses poderes funcionem melhor e em benefício da comunidade.

Pedro Marques Lopes
DN opinião 01.10.2017