O ovo da serpente e as condições para o incubar

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George Steiner, Piketty e Bachelet, todos se referem à mesma questão: o problema das desigualdades crescentes

1. Às vezes é assim: queixamo-nos de que os jornais nada dizem de relevante.

Outras vezes, porém, só podemos queixar-nos da hiperabundância de textos interessantes e lamentar-nos da sua concentração no mesmo número de um jornal.

Aconteceu-me, desta vez, com a última edição de sábado do “El País”.

No mesmo número, três entrevistas acutilantes, mesmo que de tamanhos e relevância diferentes.

Nela se incluíam uma entrevista magistral a George Steiner, outra, também muito atual, a Thomas Piketty e, por fim, uma outra a Michelle Bachelet, a atual presidente do Chile.

2. Não por acaso, todos discorrem no geral sobre as condições que permitiram o Brexit ou, mais diretamente, sobre o seu sentido preciso.

Partindo de referências culturais e experiências de vida diferentes, acabam, porém, por convergir num pensamento comum, que sinteticamente é expressado por George Steiner da seguinte forma: “O mundo vive hoje uma desigualdade terrível em relação às possibilidades de vida.”

Mesmo não se referindo em concreto ao Brexit – aliás, não chegamos a saber a data da referida entrevista -, Steiner parece adivinhar o seu resultado. Diz ele: “Contudo, ser jovem hoje não é fácil. Que lhes estamos deixando de herança? Nada. Europa incluída, que já nada tem a propor-lhes. O dinheiro nunca falou tão alto como agora. E a isso soma-se o enorme desdém dos políticos por quem não o tem. Para eles, somos uns pobres idiotas. Karl Marx viu isso com grande antecipação.”

Note-se que George Steiner não é propriamente conhecido por ser de esquerda.

Já Piketty e Bachelet se situam, com nuances, numa esquerda agora designada de “não radical ou não populista”.

Piketty explica, contudo: “Precisamos de instituições democráticas fortes, ao serviço do interesse geral, para regular a deriva das desigualdades, para controlar a potência dos mercados, do capital (…) se não há resposta para deter essas desigualdades, a resposta mais fácil é o nacionalismo e a xenofobia. E assim surgem responsáveis políticos como Trump, Johnson e Marine Le Pen… gente muito privilegiada, financeira e socialmente, cuja única estratégia consiste em explicar às classes populares brancas que o seu inimigo são as classes populares mexicanas, negras… distraem assim a atenção sobre as desigualdades e dirigem–na para as desigualdades identitárias, culturais e religiosas.”

Bachelet, mais circunspecta, acrescenta: “Por detrás do Brexit e do êxito de Donald Trump existe algo evidente: a globalização aumentou as desigualdades.”

Todos se referiram à mesma questão: o problema das desigualdades crescentes.

Tais desigualdades resultam e crescem com o sistema político e económico em que vivemos e são usadas politicamente também por quem o controla, promovendo-as e delas beneficiando.

Elas são a causa do generalizado mal-estar social que atinge a Europa e não só, mas quem as sofre é manipulado pelos que as provocam para impedir que questionem a sua verdadeira razão de ser.

A confusão entre causas e responsáveis pela atual situação é enorme, mas desejada e promovida por estes.

É, por isso, necessário que todos os que conhecem as autênticas causas da crise e – mais ou menos radicalmente – querem verdadeiramente rumar contra a maré negra que a provoca o façam com discernimento e cuidado e, sobretudo, sem deixarem que os confundam com ela.

A generalidade das pessoas está com medo e este, em regra, tolhe todas as ousadias: tende a ser conservador.

É, aliás, no medo e na confusão que se gera o ovo da serpente.

António Cluny
Jurista.

Jornal i 05.07.2016