Obrigado, Mário Soares!

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Há homens maiores que a sua própria biografia. Assim foi Mário Soares, uma vida cheia. Mas chega o momento em que essa simples verdade é de cristal, cortante e definitiva: morreu um dos pais fundadores do regime saído da Revolução de Abril, certamente o mais importante dos construtores da nossa democracia. Orgulhosamente, definia-se a si próprio como republicano, laico e socialista. Vinha de uma família com lastro na Primeira República e foi o último dos discípulos de António Sérgio e Jaime Cortesão. Aluno de Álvaro Cunhal, chegou a ser militante comunista, logo no pós-guerra. Em 1949 já o vemos em fotografias com Norton de Matos, e em 1958 com Humberto Delgado. A ditadura salazarista prendeu-o por 13 vezes, deportou-o e exilou-o. Em 1973, é no exílio que refunda o Partido Socialista. E depois de 1974, nenhuma outra figura da nossa vida pública é tão marcante no Portugal contemporâneo como Mário Soares. Ele foi ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro em três governos, Presidente da República por dois mandatos, deputado europeu. Ganhou e perdeu eleições, mas foi, em especial, um sempre-em-pé nas lealdades, político de coragem e vocação, nunca resignado e muito menos rendido, que o digam amigos e adversários, que foram muitos, e alguns alternadamente.

Culto, moderno e cosmopolita, Soares era um homem com mundo. E foi mundo que ele acrescentou a uma política externa portuguesa que, nos anos da ditadura, nos conduzira ao isolamento, por vezes à vergonha entre as nações. Amigo e companheiro ideológico de Willy Brandt, Olof Palm, Andreas Papandreo e François Miterrand, Soares foi o último de uma geração de notáveis socialistas europeus que combateram e derrotaram o fascismo que dominou parte do Continente no século passado. Federalista confesso e militante, a ele e à sua visão de futuro se deve a adesão de Portugal à Comunidade Europeia, crucial para o progresso de uma Nação que vinha de dezenas de anos de obscurantismo e atraso cultural, social e económico. Mas também a ele se devem, sobretudo no plano internacional e já nos anos mais recentes, os mais fortes avisos sobre os desvios neoliberais que em parte explicam a presente ameaça de colapso do projeto europeu. Mário Soares foi sempre um homem livre. Errou, decerto muitas vezes, por excesso ou omissão. Mas foi sempre livre. E só os homens livres lutam pela liberdade com todas as suas forças. É esse o maior legado que lhe devemos. Oxalá saibamos honrá-lo. Obrigado, Mário Soares!

Afonso Camões

Editorial JN 07.01.2017
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