Opinião

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A Constituição é só para “tempos de vacas gordas”?

Andam por aí a dizer que, tendo o Orçamento sido aprovado pela maioria que temos, o Tribunal Constitucional (TC) não pode funcionar como um “contrapoder político”. De onde se tira que o tribunal, para “funcionar” como esta gente quer, não pode senão declarar como constitucionais normas que o não sejam.
Dito de outro modo: tanto se pretende desde já condicioná-lo, passando-lhe responsabilidade política que não é (num só grama que seja) sua, como ainda se pretende que ele não exerça a sua competência, naquilo por que é (e com o enorme peso que isso desta vez acarreta) inteiramente responsável.
Ora este discurso subentende conceções muito perigosas, negando as próprias bases da nossa organização política. Fosse ele apenas fruto de algum populismo de quem nada dela sabe e não se afigurava tão grave – bastava que os media o desmontassem, dando voz àqueles que têm algum dever de esclarecimento cívico quanto a estas questões – que são, note-se bem, a essência da nossa ordem política. Para mal nosso, o caso é outro. A autoria destas barbaridades é amiúde de cortesãos do regime, sejam eles políticos, comentadores, articulistas, entrevistadores ou entrevistados – a de muitos daqueles a quem se entrega o palco. E da qualidade dessa cena pública depende o caráter mais ou menos ignaro das ideias que depois circulam.
No caso que nos ocupa, não se pode senão deduzir que o propósito seja precisamente confundir, comprometendo o TC – o que ofende a sua autonomia e soberania.
Como não houve revolução nem o regime foi deposto, o Governo só pode atuar no quadro jurídico e político a que ele próprio se tem de conformar, antes de mais obedecendo à Constituição. Um ditador pode subordinar ao seu poder outros, mudando ou suspendendo, de entre as bases constitucionais, o que lhe der jeito.
Salazar, se bem se lembram, fê-lo (suspendendo o art.° 8.°). Em democracia, dando ou não jeito, não se pode – ou já não estaremos em democracia. Dir-se-á que as circunstâncias são excecionais – mas da exceção (que já o TC concedeu – será preciso lembrá-lo? -, para o Orçamento de 2012, relativamente aos subsídios efetivamente “cortados” este ano) quer fazer-se norma? Ou a “crise” é transitória ou não é crise – é situação que dura ou permanece?
Dir-se-á que, se este orçamento não for aprovado, ainda será pior (que os mercados, que a troika…). Pior para quem? Não para aqueles que o Governo pretende lesar de modo tão intolerável – porque ilegítimo e inconstitucional. Não para os reformados. Não há direito, com eles – e, perante esta falta de respeito, se não for o TC, quem é que lhes pode acudir? Não para Os trabalhadores. Para os que não são assim atingidos? Para o capital? Provavelmente. Para o Governo, para esta maioria que se fez aclamar por dizer que nunca faria o que (só) fez? Seguramente.
[Quanto à troika, já Durão Barroso achou por bem vir dizer o óbvio: só o Governo é responsável pelas medidas concretas e péla sua aplicação. Para cumprir determinados objetivos, há que ponderar por onde é que se quer ir. Por exemplo: com que é que o Governo se comprometeu, no memorando, relativamente à reforma autárquica? E o que é que fez? Pois se até podia ter aproveitado, se fosse imune a clientelas e capaz de se impor a “aparelhos”, para alicerçar medidas que se impõem, perante a falta de coesão, em termos regionais. E este é apenas um bom exemplo (há de poupar muito, há de) do que, em vez do que podia e devia, optou sempre por fazer. O que se há de esperar de um Governo fraco com os fortes?]
Não deixemos que tais “argumentos” subvertam a questão. Que é esta: se o Governo quer que um seu orçamento seja aprovado, em sede constitucional, só tem uma coisa a fazer – cuidar, como é sua obrigação, de que esteja conforme: de que não deturpa nem perverte os princípios consagrados na Constituição. Se repetidamente não o faz, “faz pouco” do regime que assim afronta, dos cidadãos que assim esmaga, do Tribunal Constitucional e dos juizes que, ainda antes de chamados a decidir, já são “avisados”, por um coro que brada aos céus, de que não podem senão “branquear” (argumentando de novo a exceção) aquilo que se quer lei.
Em artigo de opinião recente (“Fiscalização preventiva”, “Público”, 4/12, p. 47), defende Maria Benedita Urbano que a “fiscalização preventiva, na medida em que não consente a entrada em vigor de normas inconstitucionais, pode comprometer a governação ou certas opções políticas fundamentais da governação”. De onde se depreende que há, naturalmente, que consentir “a entrada em vigor de normas inconstitucionais”!
A autora considera “imprescindível que presidente da República e Tribunal Constitucional ponderem bem a sua atuação”. Todos os portugueses o esperam. Todavia, ao contrário da perspetiva aqui assumida, muitos também esperam – e nisso confiam – que seja respeitada a lei. Para muitos, se o senhor presidente da República não requerer a fiscalização preventiva deste orçamento, tendo tantos cidadãos fundadas dúvidas sobre a sua constitucionalidade (o que a autora não nega, pelo contrário – o que advoga é que à legalidade constitucional se deve antepor, ou sobrepor, a opção governativa que considera essencial, dada a conjuntura), manchará indelevelmente o seu mandato.
Sustenta Maria Benedita Urbano um “direito de crise”: “e um direito de crise ( ) não pode ser lido, por quem tem o dever constitucional de controlá-lo (sic) como um direito de tempos normais”. Senhora Professora Doutora: é isto que ensina aos seus alunos? Como professora de Direito Constitucional? Se fosse a senhora a julgar, já ninguém tem dúvida: a nossa Constituição também é para ser “adaptada”: é uma Constituição para o “tempo das vacas gordas”!

Aida Santos, Professora Aposentada | Jornal de Notícias | 17-12-2012