Quem cassa algumas carteiras de pseudo-jornalistas?

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Não pode valer tudo. A menos que queiramos cultivar um monstro: um povo de tal forma embrutecido que já não reage a nada, não se escandaliza com nada, não se indigna com nada e engole tudo da mais estúpida novela à mais violenta cena de crime. São povos assim que elegem os ditadores patetas que por aí começam a proliferar.

Talvez não se conseguisse ver nada a não ser a morte. Talvez a morte seja grande demais para se perceber, em 90 segundos, que por detrás dela estava um homem e uma criança vivas e despreocupadas no areal. Talvez o mar de gente e o mar azul não se distinguissem aos olhos de quem caía do céu, e já sentia o aperto do seu abraço. Talvez o piloto tivesse feito o possível para se afastar da praia e não o tenha conseguido com a morte a zumbir-lhes aos ouvidos num terramoto que apenas dura dez segundos. S. João da Caparica não é a minha praia. Julgar também não.

Não sei. Não estava lá. E, depois de ler o relato de duas testemunhas credíveis: a blogger do “A mãe já vai”, que confessa que entrou em pânico, e o jornalista Enrique Pinto Coelho que a SIC serenamente entrevistou, continuo sem saber. Os vídeos que as TVs passaram à exaustão não mostram nada, não dizem nada, não provam nada. São pura tragédia. Contam-nos apenas a estória do bom gigante: o homem, um jogador de basquetebol, que soube descobrir o seu lugar na cena da desgraça para evitar outra maior e perante o qual a populaça, agindo em rebanho, sedenta de mais sangue, se acobardou.

Mas uma coisa sei. Sei de fonte segura que ninguém que se diga jornalista pode entrevistar um pai a quem a filha de oito anos acaba de morrer atropelada, escasso tempo antes, por uma avioneta que cai no areal onde brincava.

Esse ou essa (não identificarei nem o nome nem o meio para não publicitar) – e confio mais uma vez no relato de Enrique – não pode manter a carteira profissional sem que lhe dêem a ler o código deontológico e o/a obriguem a copiá-lo vinte, trinta, cinquenta vezes. Quantas forem necessárias até que perceba esta regra básica: ninguém pode espetar um microfone à frente de um pai perturbado por uma dor tão profunda. Alguém a quem a emoção e o choque tolde de tal forma o juízo que, por mais estruturado que ele pareça, não pode em caso algum ser pedido e muito menos ainda reproduzível. É como entrevistar o cadáver. É como dar voz à própria morte. E se o jornalista é tão jovem que não consegue perceber o que é perder um filho, que haja uma chefia co-responsável.

Para que serve a ERC? E a comissão da Carteira? E o Sindicato de Jornalistas, se não servem para esta coisa básica que é mostrar que na guerra de audiências não vale tudo? Não pode valer tudo. A menos que queiramos cultivar um monstro: um povo de tal forma embrutecido que já não reage a nada, não se escandaliza com nada, não se indigna com nada e engole tudo da mais estúpida novela à mais violenta cena de crime. São povos assim que elegem os ditadores patetas que por aí começam a proliferar.

Um povo que Enrique Pinto Coelho descreve, no seu sereno texto no Observador, pela chocante “indiferença com que muitos banhistas encararam a tragédia: namorados aos beijos a cem metros do local do acidente, pessoas a beber ‘cocktails’ nos bares com vista para o Cessna”.

Esse povo que eu vi, não sei se no mesmo dia se na véspera, numas outras imagens da TV, em que o pessoal da emergência médica retirava das águas o cadáver de um jovem de 16 anos que tinha saltado de uma prancha e desaparecido, numa outra terra algures neste país. Velhos, jovens e crianças encavalitados na amurada, sem deixar de lamber os gelados que tinham entre mãos, sem o mais leve trejeito de respeito e dor pela vida perdida do adolescente morto.

A morte que seguia de maca, embalada de branco, passava perante a mesma indiferença que se viu naquele areal da praia de S. João quando a tarde de praia não se tornou insuportável para os restantes banhistas. Deixando a triste impressão de que a morte caída do céu se tornara apenas numa nova estória para apimentar o jantar. Talvez seja por isso que as vidas dos outros se tenham tornado pequenas demais para poderem brilhar como estrelas num mar de gente na zona de rebentação do mar da morte.

Esta sexta-feira, em Diavolezza, nos Alpes Suiços, outra avioneta caiu sobre um campo de férias frequentado por cerca de duas centenas de adolescentes. O piloto/instrutor e duas crianças de 14 anos morreram, enquanto outra de 17 ficou ferida em estado grave. A experiência da aviação, segundo o jornal Suiço ” 20 minuten”, fazia parte das actividades do campo. Espero, sinceramente, que as férias de todos se tenham interrompido o tempo suficiente para que possam viver o luto pelos seus companheiros. O mundo andará muito mal se as férias (imagino que já pagas e suficientemente caras) simplesmente continuarem.

Graça Franco