Raposo

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Um Raposo a dar-nos música

Por mim, prefiro-os assim: praticamente sem truques semânticos e retóricos que interponham entre eles e quem os ouve ou os lê uma cortina de fumo a encobrir a sua verdadeira agenda, como agora se diz. Nesse sentido, exercem uma função pedagógica de inestimável valor: lendo-os ficamos cientes das linhas com que se cosem e aquilo com que podemos contar. São, por assim dizer, as vozes, despidas de artifício, dos donos aqui do burgo e dos que o desgovernam em nome dos seus interesses. Com uma ingenuidade enternecedora põem tudo a nu para que a ninguém restem dúvidas. Não sei se os mandantes lhes ficam agradecidos. Duvido. Mas nós só lhes podemos ficar reconhecidos pela sua “honestidade”. E muito em especial os reformados, transformados pelos senhores do momento em bombos da festa. Leiam pois, com atenção, esta “pérola jornalística”: 
«Qualquer debate sobre o futuro da SS [no passado] era assassinado à nascença pela gritaria esquerdista. Jornalistas, políticos, políticos-comentadores (uma contradição em termos, adorada pela pátria), colunistas e pivôs, todos juntinhos faziam um coro em redor do “vem aí a privatização da SS” ou do “isto é uma ofensiva neo-liberal”. Esta era (e é) a cultura vigente. Aliás, se tivesse entrado na acção governativa em 2006 ou 2007, estou convencido de que aquela reforma da SS teria sido travada pelo Tribunal Constitucional, o mordomo dos tabus, coros e ecos do regime. E agora? Bom, o tribunal que bloquearia a “privatização da SS” é o mesmo tribunal que se prepara para bloquear a solução alternativa (os cortes nas pensões mais altas). Até parece brincadeirinha, não é? O regime não quis resolver o problema a montante devido ao fanatismo ideológico do costume e, agora, recusa enfrentar a realidade a jusante por causa dos “direitos adquiridos” de 10% dos reformados, os 10% constituídos pelos mais endinheirados do universo de pensionistas.»
Henrique Raposo, Expresso, 23 de Março de 2013
“Reforma” da SS significa, no novel dicionário da política à portuguesa, a substituição do actual por um sistema assistencial residual (que os actuais donos do regime sabem poder dispensar para si próprios) em flagrante contradição com os direitos sociais consagrados na CRP. A oposição a uma tal “reforma” é apresentada como ideológica (“esquerdista”), escamoteando-se que essa oposição tem uma sólida base jurídica. Pelo contrário, é a “reforma” que está em curso que tem uma natureza inegavelmente ideológica (neo-liberal). Como se fossem “ideológicas” as dificuldades crescentes de uma enorme faixa da população remetida para níveis próximos ou abaixo do limiar de pobreza!
Há já algum tempo que a infeliz expressão “direitos adquiridos” parece ter ganho, por acção da propaganda, uma conotação pejorativa. E, pior, sugere que o que é adquirido pode perder-se. Neste, como em tantos outros casos, a adjectivação nada acrescenta à clareza do discurso. Os direitos são, simplesmente, direitos, e todos são adquiridos. Ou em virtude do contrato original que fundamenta o Estado (a Constituição) ou por via da Lei .
Na caso da SS, os direitos que se lhe referem estão ancorados no artigo 63º da CRP, e constituem um dos limites materiais das revisões constitucionais (artigo 288º alínea d), o que implica que não podem ser alterados sem uma ruptura constitucional. Foram “adquiridos” em consequência do contrato original entre os cidadãos e o Estado e gozam de uma garantia absoluta que nem mesmo uma maioria qualificada de deputados pode alterar.
No caso específico do(s) regime(s) das pensões, consagrado(s) pela Lei, resulta(m) de contrato(s) celebrado(s) entre os cidadãos e o Estado, de que resultam direitos e deveres que obrigam ambas as partes e cuja garantia repousa sobre um princípio geral do Direito: o princípio da confiança, ele próprio consagrado pela CRP. Quanto a um tratamento diferenciado dos reformados relativamente a outros cidadãos (caso da CES), ele é liminarmente excluído pelo princípio da igualdade, também consagrado na Constituição.
A defesa da SS não tem pois, ao contrário do ataque que lhe é movido, natureza ideológica, mas puramente jurídica. E, do mesmo modo, a defesa dos direitos dos reformados. A afirmação, repetida á exaustão, de que “não há dinheiro”, mesmo que fosse verdadeira, o que está longe de ser incontroverso, mais não seria que o enunciado de um facto que não pode sobrepor-se à Lei.
Que os adversários do sistema da SS não o ignoram, prova-o o ataque sistemático ao Tribunal Constitucional. É que este, nas suas decisões, não pode guiar-se por argumentos de ordem ideológica, política ou económica, mas exclusivamente pela Constituição e pela Lei. O TC não é, como o afirma Henrique Raposo, “o mordomo dos tabus, coros e ecos do regime”. É o guardião do Estado de Direito, como o deveria ser o Presidente da República que, porém, preferiu lavar as mãos como Pilatos e sacudir a água do capote. Assim, só o TC nos separa da barbárie. Não lhe compete “bloquear”, como também não viabilizar “soluções”, mas avaliar da sua constitucionalidade ou legalidade. Compete à AR (e ao Governo) exercerem as suas competências e encontrar “soluções” em conformidade com o Direito. Quando o não fazem e subvalorizam o primado da Lei, não podem queixar-se do TC por exercer a sua competência própria.
“Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, alertava a Sophia de Mello Breyner: não podemos ignorar que só um golpe de estado constitucional serve aos actuais detentores do poder e aos que eles servem. Esta eventualidade tornar-se-á cada vez mais eminente enquanto mais as instituições democráticas, ou algumas delas, souberem resistir e fazer gorar as suas manobras. Não podemos dar por garantido o regime democrático constitucional saído do 25 de Abril. Se o quisermos preservar temos que estar preparados para o defender do “fanatismo ideológico” dos seus inimigos. A vitória não está de modo algum assegurada. Tudo depende de nós.
Uma última observação: lidamos com gente disposta a tudo para alcançar os seus objectivos, mesmo à mais grosseira mistificação. Escreve HR que a “solução” para uma “reforma” da SS está a ser bloqueada “por causa dos “direitos adquiridos” de 10% dos reformados, os 10% constituídos pelos mais endinheirados do universo de pensionistas”. Ele, como todos os outros que espalham estas falsidades, não pode ignorar estar a procurar manipular a opinião pública. Mete no mesmo saco as pensões de 1350 euros até às de 70000 ou mais, descrevendo todos estes reformados, sem distinção, como “os mais endinheirados”. Como já vem sendo hábito, procura-se colocar portugueses contra portugueses, reformados contra reformados, omitindo o facto de que os outros 90% de reformados são as maiores vítimas do seu ataque à SS e que a luta de uns é a luta dos outros. Esta gente não tem vergonha mesmo. Como se não tivessem sido eles a viabilizar para os seus amigos e comparsas as pensões milionárias que querem agora misturar com as de quem contribuiu ao longo de 40 anos, cumprindo os deveres a que se comprometeram, de acordo com o contrato celebrado, e que vêem agora o Governo contestar os seus direitos.
Luis Gottschalk