Sustentabilidade

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1. Por estes dias, porque a ministra das Finanças entendeu que não seria honesto não dizer determinada coisa que poderia não ser necessária, o país anda, uma vez mais, com a boca cheia de “sustentabilidade” da Segurança Social. Os comentários são os habituais, pelo que, infelizmente, nada acrescentam. A decisão que tomei de entrar no “debate» resulta de duas circunstâncias: primeiramente das grosserias éticas e humanas que têm sido ditas e que urge corrigir, e, em segundo lugar, porque uma questão eminentemente política está a ser discutida com um simplismo contabilístico que seria de pasmar se não fosse esse o clima em que temos vivido e isso o que alguns entendem por “política”.

Primeiro, as grosserias. Por razões diversas e conhecidas (desemprego, perfil demográfico, longevidade, generalização da tecnologia, etc.), o valor das contribuições para a Segurança Social por parte dos trabalhadores no ativo é inferior ao das pensões pagas aos atuais pensionistas. E o que pode prever-se quanto à evolução dos fatores subjacentes a essa realidade não aponta para a inversão da situação, dentro de horizonte visível. Por isso, há quem considere estarmos perante um problema de sustentabilidade da Segurança Social, mais particularmente das pensões. E o raciocínio subjacente é tão simples como simplista: o nosso sistema de Segurança Social é de repartição, o que quer dizer que, em termos de tesouraria, os pagamentos das pensões de cada ano são feitos com as receitas do mesmo ano. Daí decorre uma série de considerações grosseiras, tais como o de que os ativos de hoje estão a ser sugados pelos pensionistas de hoje, o de que as pensões têm de ser cortadas para se ajustarem às contribuições que se vão recebendo, tendo sido criado um chamado “índice de dependência», que corresponde ao rácio do número de ativos por cada pensionista (e mais não reflete do que uma situação de tesouraria)! Como se vê, os raciocínios acerca da “sustentabilidade financeira” da Segurança Social não passam da esfera da tesouraria, o que é aceitável num contabilista mas não num governante, mesmo (ou sobretudo) quando seja o das Finanças.

O que acaba de se dizer ignora que a Segurança Social, antes de ser matéria para contas de aritmética, é matéria para opções políticas. E é grave quando um governante tem os seus critérios de “honestidade” circunscritos a contas de somar, com a agravante do odioso que resulta sobre os pensionistas que, pretensamente, estariam a viver “à custa dos ativos”, criando-se, assim, um problema na relação entre gerações! Vejamos.

2. O sistema de Segurança Social implica um contrato bilateral entre o “beneficiário” e o sistema, pelo qual, em conformidade com as regras estabelecidas, o sistema recebe durante a vida ativa do beneficiário as contribuições fixadas, tendo este o direito a uma pensão de reforma no final da carreira, calculada nos termos fixados na mesma lei. Trata-se, como disse e vale a pena repetir, de um contrato entre duas partes, no qual nenhuma outra (terceira) é chamada a intervir. A garantia da sustentabilidade financeira do sistema é da exclusiva responsabilidade de quem gere o sistema e não tem nada que lançar mão da intervenção de terceiros, designadamente dos trabalhadores no ativo, para explicar o problema. Que o sistema seja de repartição pura, de capitalização ou outro qualquer é uma questão da exclusiva responsabilidade do sistema. Como o nosso sistema é público, essa responsabilidade é do Estado e apenas do Estado. E este é um problema político e de política.

3. Uma das coisas que faltam aos “especialistas de contas de somar” é o conhecimento de que a Segurança Social tem subjacente um suporte de filosofia política e uma história que não devem ser ignorados. O primeiro sistema de Segurança Social, criado na Alemanha, por Bismarck, em finais do século XIX e princípios do século XX, foi circunscrito ao mundo laboral e requeria o vínculo laboral como condição de entrada no sistema. Era um sistema de solidariedade entre a classe trabalhadora. Passado que foi mais de um século sobre aquela fase inicial, hoje todos sabemos que, entretanto, tiveram lugar mudanças sociais que tudo indica não serem conjunturais, e que acarretam um encolhimento das receitas tradicionais e de uma expansão das despesas com pensões. Para os especialistas de contas de somar, é evidente que só existe uma solução: reduzir as despesas à medida das receitas. Por limitações ideológicas ou outras, não está dentro do seu âmbito de possibilidades a consciência de que as mudanças sociais verificadas recomendem mudanças no modo de conceber a relação entre a sociedade e a Segurança Social.

Esta relação é moldada, antes do mais, pela noção de riscos sociais, entendidos como riscos que têm três características importantes:

i) de modo geral, todos os cidadãos estão sujeitos a esses riscos, e o comum dos cidadãos não tem possibilidades de os enfrentar pelos seus próprios meios (daí que se coloquem esses riscos num pool, para o qual todos contribuem e do qual todos beneficiam);

ii) esses riscos não têm relação com o mundo laboral e abrangem a generalidade dos cidadãos; 
iii) a noção de uma solidariedade restringida à classe laboral deve ser hoje entendida como abrangendo toda a sociedade, numa noção mais próxima do bem comum da sociedade.

Uma das grandes mudanças que o evoluir das sociedades colocou na esfera da Segurança Social é, pois, a do alargamento do âmbito do sistema, da classe trabalhadora para a sociedade como um todo. Uma das consequências financeiras deste alargamento conceptual (de filosofia política) é a de que a Segurança Social deverá ser financiada por todas as fontes de rendimento. Os benefícios de base não-contributiva existentes entre nós constituem um modo mitigado deste modelo. Trata-se, agora, de generalizar a ideia. Neste entendimento, deixa de haver razão para que apenas as empresas “trabalho-intensivas” contribuam para a Segurança Social e as “capital-intensivas” sejam isentas (ou quase) desse aspeto da solidariedade social, e, a título individual, para que apenas os rendimentos do trabalho contribuam para o sistema e os do capital sejam isentos.

Fica, assim, claro que a chamada sustentabilidade da Segurança Social não é apenas um problema de contas de somar. Quem pense o contrário deve reconhecer que está limitado por critérios ideológicos ou de filosofia política que foram muito úteis no princípio do século passado, mas devem hoje considerar-se ultrapassados.

4. Naturalmente, o que proponho implica uma solidariedade mais profunda no seio da sociedade portuguesa. O que se vem sabendo acerca da desigualdade no mundo, na Europa e entre nós aponta para a necessidade de padrões mais exigentes de justiça social e de solidariedade. E também este é, além do mais, um ponto eminentemente ético-político, e um campo onde se irão digladiar os diversos interesses. Vale a pena ter claro o panorama e as verdadeiras razões dos pontos de vista que estão “sobre a mesa”.

Alfredo Bruto da Costa

Economista, ex-ministro
Opinião Público 06.06.2015