Um agradecimento a Graça Freitas , um texto de Daniel Oliveira

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“Graça Freitas é o bombo da festa de todo o virologista instantâneo, bastonário-político e apostador de segunda-feira. Não é uma “girl” de um partido ou uma saltitona entre o público e o privado. Não ganha um salário à altura das toneladas que lhe caíram em cima. Cometeu erros e cometerá mais. Mas não sucumbiu E eu quero agradecer-lhe por ser uma servidora pública num tempo em que isso é tão desprezado. Saiba que há, neste país, quem dê valor a esse lugar onde ninguém queria estar agora”
 

Daniel Oliveira

 

“Alguns países escolheram um anónimo de um grupo de risco como primeiro vacinado. Outros, no extremo oposto, escolheram o primeiro-ministro. Portugal optou por alguém que, tendo 65 anos (e 42 de serviço), está entre o primeiro grupo a vacinar: o pessoal de saúde, opção óbvia para quem não decida em função da popularidade, mas da necessidade. E alguém que, perante a enorme visibilidade da primeira vacina, conseguisse transformar esse acontecimento mediático num momento de sensibilização para a vacinação. Com a resistência de muitos à vacina, a demonstração de confiança tem de ser dada por alguém com autoridade científica, técnica e moral. Mesmo assim, não faltou quem atribuísse àquele momento o significado oposto: o privilégio do “senhor doutor”.
Só o mais desbragado populismo pode ter levado figuras públicas a lançar este isco nas redes sociais. E é também a cedência a este populismo que leva o Estado a não vacinar, logo na primeira fase, o Presidente da República, o primeiro-ministro e as equipas dirigentes do Ministério da Saúde e da Direção-Geral da Saúde. Como se explica que seja preciso vacinar quem combate a pandemia mas se dispense vacinar quem dirige esse combate?
Toda a celeuma imbecil em torno do primeiro vacinado é mais um exemplo do vício da polémica estéril em que vivemos submersos. Gerir crises em tempo de redes sociais e ciclos noticiosos de 24 horas é muitíssimo mais difícil do que antes. O escrutínio é maior e isso é genericamente bom. Mas, por vezes (cada vez mais vezes), as coisas atingem níveis de mesquinhez insuportáveis. E isso tem efeitos: o rápido e profundo desgaste de quem tem de tomar decisões e a fuga dos melhores, indisponíveis para se dedicarem ao permanente jogo das aparências para não serem triturados na praça pública. Isto conta mais do que os salários que se pagam. E leva a decisões defensivas que podem ser péssimas para o bem comum.
É neste contexto que quero começar o ano a falar de uma das pessoas que há meses anda com um alvo nas costas sem que alguém se dê ao trabalho de a defender: Graça Freitas.
Há muitos anos, da primeira vez que foi a uma reunião de emergência da OMS, em substituição de um diretor-geral da Saúde, Graça Freitas ouviu esta frase de um responsável internacional: “Quando esta epidemia acabar vamos ter vítimas, vamos ter heróis e vamos ter bodes expiatórios. Os bodes expiatórios estão todos nesta sala.” Quis demitir-se e o diretor de então respondeu-lhe: “somos servidores do Estado, estamos cá para isto.”
Esta história contou-ma Graça Freitas, no início de março, quando a entrevistei para o meu podcast. Quase um ano depois dessa entrevista, é o bombo da festa de todo o virologista instantâneo, bastonário-político e apostador de segunda-feira. Não é uma “girl” de um partido ou uma saltitona entre o público e o privado. Ao contrário de tantos gestores que desprezam o Estado, não ganha um salário à altura das toneladas que lhe caíram em cima. Cometeu erros e cometerá mais e pode e deve ser criticada por isso. Disse coisas que não devia sobre uma pandemia em que, sejamos sinceros, todos andaram inevitavelmente a improvisar durante muito tempo. Mas não sucumbiu.
Não sou amigo nem próximo de Graça Freitas. Nem sequer conhecido. Aquela conversa, no início de março, foi a única que tive com a diretora-geral da Saúde. Mas, chegado ao fim do ano, quero agradecer-lhe por ser uma servidora pública num tempo em que isso é tão desprezado. Para que saiba que há, neste país, quem dê valor a esse lugar onde ninguém queria estar agora”