Uma lição da GNR

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Miguel Esteves Cardoso

 
 
Tinha-me esquecido que não se podia andar de carro depois da uma da tarde. Ou, pior do que esquecer-me, não me dei ao trabalho de me informar.
 
 

Tive de ir à farmácia mas, quando voltava para casa, sucumbi à tentação de virar para a Praia Grande. Tinha saudades do mar e o mar na Praia Grande mata abençoadamente quaisquer saudades que se tenham.
Tinha-me esquecido que não se podia andar de carro depois da uma da tarde. Ou, pior do que esquecer-me, não me dei ao trabalho de me informar.
Assim foi que, ao voltar da Praia Grande, com os pulmões cheios de maresia, vi a marcha interrompida pelo braço estendido de um militar da GNR.
“Estou tramado”, pensei. É o contrário do que acontecia quando era miúdo e entrava para o confessionário: ocorreram-me imediatamente todos os meus pecados.
Desci o vidro e fui surpreendido pela continência do oficial. “Senhor condutor”, disse-me ele com um sorriso civilizado, “Boa tarde. A circulação está proibida desde as treze horas”.
Pedi desculpa e, escusadamente, expliquei que vinha da farmácia, sacudindo o respectivo saco.
Ele não precisou de implicar comigo – “Ah sim, então porque é que vem da praia? Foi à farmácia dos surfistas comprar um penso para a prancha?” – porque eu já estava arrependido.
Quando cheguei a casa, com aquele alívio próprio dos facínoras, tratei de ir estudar e decorar o mapa das proibições rodoviárias para não passar outra vez pela mesma vergonha.
É assim que funciona o bom policiamento: inibe a transgressão não só presente como futura.
Não foi preciso dizer-me, como nos clássicos: “por esta vez, passa – mas, para a próxima, levas”. Porque foi esse o efeito que teve.
Senti que, enquanto os meus concidadãos estavam fechados em casa a beneficiar a saúde pública, eu andava armado em valdevinos pelas praias, a cheirar os cus aos búzios.
A culpabilidade é difícil de incutir mas, quando se incute, fica.
 
 Miguel Esteves Cardoso
 03.01.2021