Viagem ao mundo do crescente e perigoso fenómeno das notícias falsas

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Criam réplicas de meios de comunicação firmados e difundem títulos disfarçados de notícias, via redes sociais, para assim disparar os cliques e os lucros. Conheça o Top 5 das notícias falsas com mais interações no Facebook e recorde como as identificar

RECORDE: Guia básico para identificar notícias falsas

Jimmy Rustling deve ser dos jornalistas mais populares e cobiçados do momento nos Estados Unidos da América. A cada notícia que assina, as audiências disparam. Só assim se explica que as concorrentes CNN, NBC e ABC, três das principais cadeias televisivas do país, publiquem os artigos dele, em simultâneo, nos seus sites informativos.

A “excelência da escrita”, como se pode ler ao clicar sobre o nome do autor, já lhe valeu “14 prémios Peabody e uma mão-cheia de Pullitzer”. E 2016 parece ter sido mais um ano de sucesso: Jimmy colecionou “furos” de grande impacto mediático com artigos a que deu títulos como “Obama assina ordem executiva para proibir o Juramento de Lealdade nas escolas a nível nacional”; “Protestante de Donald Trump denuncia: ‘Pagaram-me 3 500 dólares para protestar no comício de Trump”; ou ainda “Obama assina ordem executiva para abrir investigação aos resultados das Eleições; nova votação prevista para 19 de dezembro”.

Qualquer leitor mais atento, mesmo deste lado do Atlântico, estará já a ouvir sonoras campainhas de alarme. Nada disto soa verdadeiro.

Bastaria ir além dos títulos, servidos na “grande montra” das redes sociais, para em meia dúzia de minutos se confirmar que todas as informações do parágrafo anterior só existem num mundo do faz de conta: nem as supostas notícias são para levar a sério, nem o seu autor recebeu os mais prestigiados prémios de jornalismo, nem o que escreve é publicado em meios de comunicação social. Jimmy Rustling não é, sequer, jornalista, quanto mais cobiçado no meio e o nome, já agora, também não é real. É um embuste nascido e criado na internet com o propósito de gerar cliques que são sinónimo de dinheiro.

É esta a primeira pista, a do vil metal, quando se tenta seguir o rasto das notícias falsas difundidas online. Nem tudo é ilusão nos relatos de Jimmy, se é legítimo chamar-lhe assim. Como se impõe neste negócio, os seus textos inventados alcançaram forte propagação mediática.

Começaram por ser disponibilizados em sites que se fazem passar pelas verdadeiras CNN, NBC e ABC, a ponto de lhes replicarem o nome. Para aumentar o efeito pretendido, socorrem-se de uma subtil alteração nos endereços URL, impercetível aos mais distraídos por exemplo, para se disfarçar de ABC News (abcnews.com), a solução escolhida foi abcnews.com.co. O engodo resultou em jackpot: Jimmy Rustling assinou ali a notícia falsa que gerou maior número de interações no Facebook em 2016. Entre partilhas, gostos e comentários na rede social de maior alcance, a ideia de que Barack Obama havia proibido o Juramento de Lealdade à bandeira dos EUA nas escolas acumulou mais de dois milhões de reações.

Os outros artigos já referidos, sobre a manipulação de ações de protesto nos comícios de Trump e a repetição das eleições presidenciais, também constam do top-50 das “fake news” ou notícias falsas com maior impacto ao longo do último ano, segundo um ranking do BuzzFeed News baseado na análise de tráfego no Facebook de 96 sites associados ao fenómeno, que chega a contagiar alguns media de referência e a preocupar especialistas e leitores em todo o mundo.

À CAÇA DE CLIQUES
O sucesso na rede social de Mark Zuckerberg, onde se concentram mais de 1,7 mil milhões de pessoas, é decisivo para garantir receitas. Quanto mais utilizadores forem atraídos para determinado site, através dos cliques nos posts publicados no Facebook, mais cresce o valor comercial desse site para os anunciantes. E maior é a probabilidade de aumentar o tráfego nos conteúdos publicitários, a verdadeira galinha dos ovos de ouro do negócio.

O AdSense, da Google, é o serviço mais popular neste campo, mas existem muitos outros que se propõem a gerir a publicidade dos sites: vendem os espaços disponíveis a anunciantes e compensam os donos dos sites, regra geral, com alguns cêntimos por cada clique nesses conteúdos publicitários. Qualquer site pode candidatar-se, mas nem todos são aprovados, no caso do AdSense. Paul Horner, mentor das páginas onde emerge o nome de Jimmy Rustling e as suas histórias mirabolantes, está dentro. Segundo revelou ao Washintgon Post, a atividade rende-lhe 10 mil dólares ao mês.

O mais provável era este valor descer a pique se a maioria dos que interagiram no Facebook com a “fake news” mais mediática de 2016, por exemplo, a tivessem lido. Conhecedores de que até Fappy, “o golfinho antimasturbação”, tinha direito a ser citado nessa história, perceberiam o engodo e talvez se inibissem de a partilhar.

Mas Horner é um profissional experimentado da ilusão noticiosa e sabe que os conteúdos contam pouco para gerar o fluxo que lhe interessa. Basta o título.

“É típico as pessoas não lerem as notícias”, nota Inês Amaral, que leciona a cadeira de Cibercultura na Universidade Autónoma de Lisboa e no Instituto Superior Miguel Torga, em Coimbra. Em contraste, diz, “um share ou um like está a milésimos de segundo de distância”.

Eric Trump não escapou a ser vítima deste impulso. Ao retweetar a história do homem que dizia ter protestado contra Donald Trump a troco de dinheiro, o filho mais velho do Presidente americano eleito nem terá reparado que, no corpo do texto, surgia alguém a apontar que “os apoiantes de Trump são as últimas pessoas a doar meias aos sem-abrigo”.

É este tipo de interação mais emocional do que racional que leva Rita Figueiras, investigadora na área da comunicação política, a considerar “um exagero” culpar as notícias inventadas e disseminadas nas redes sociais pela vitória de Donald Trump, como sugerem alguns analistas americanos. A coordenadora do Doutoramento em Ciências da Comunicação da Universidade Católica defende que a informação, por si só, “não tem a capacidade de mudar o sentido de voto” de um eleitor, mas apenas “a de reforçar uma perceção que ele já tem”.

Certo é que o filão Trump, com o tráfego que gera na internet, tem sido explorado em larga escala por oportunistas das “fake news”, não só nos Estados Unidos da América mas também em países tão improváveis como a Macedónia ou a Roménia. A caça ao clique terá rendido bons frutos ao site Ending The Fed, gerido por um jovem romeno, com a publicação de um artigo intitulado “Papa Francisco choca o mundo ao apoiar Donald Trump para Presidente, diz comunicado”. Como muitos outros, este autor gere os conteúdos numa lógica simplista de corta-e-cola e tentativa-erro, à espera que algum se torne viral. O que juntou o Papa a Trump, plagiado de um site que já não se encontra acessível, terminou o ano com quase um milhão de interações no Facebook, terceiro “melhor” desempenho entre as “fake news”. A política, esclareça-se, está longe de ter o exclusivo deste nicho de mercado enviesado tanto há potencial em lançar para a fogueira que o “Líder do ISIS apela aos muçulmanos americanos para votarem em Hillary Clinton” (10.ª com mais interações no Facebook em 2016) como em algo do género “Mulher assassina colega de quarto da universidade por lhe enviar demasiados pedidos no Candy Crush” (14ª).

TERRENO FÉRTIL DE PROPAGANDA
Mas as estratégias para amplificar o alcance das notícias falsas não se esgotam nestas combinações de palavras despejadas na rede social de eleição, por muito absurdas ou incendiárias que possam ser. Há quem invista numa ferramenta paga do Facebook, destinada a promover publicações específicas que desse modo aparecem em maior destaque nos feeds de alguns utilizadores como se o algoritmo que determina o que veem em primeiro lugar ganhasse uma nova ordem. E há também quem saiba enganar o algoritmo do Google, através de meios ilícitos, para ganhar visibilidade nos resultados gerados pelo motor de busca. À pergunta em inglês Did The Holocaust Happen? (“O Holocausto aconteceu?”), a primeira resposta do Google é uma ligação para um site com 10 razões para nos convencer que o extermínio de judeus na II Guerra Mundial nunca aconteceu.

Se a internet no seu todo é este terreno fértil para teorias da conspiração e propaganda política, imagine-se a rede social onde cada pessoa partilha impressões e fotografias com amigos de carne e osso, num registo de proximidade, intercaladas no feed de notícias com posts de sites de entretenimento e informativos, também estes rendidos aos “encantos” de uma gigantesca fonte de audiência. Um cocktail impossível de misturar noutro lugar. E assim como fica aberta a janela para as notícias falsas espreitarem sem freio imediato, escancara-se a porta para os influenciadores entrarem em jogo e, na sombra, venderem a sua verdade. “Há uma contrainformação permanente e as pessoas não são capazes de filtrar, tudo o que vem à rede é peixe”, observa Inês Amaral, da Autónoma. “A propaganda existe hoje a uma escala que nunca tinha existido.” Quanto mais notícias falsas circulam nas redes, mais importante é o papel do jornalismo de qualidade como filtro que separa o trigo do joio. “O que está em causa são os fundamentos do próprio regime democrático. O jornalismo profissional, cumprindo regras deontológicas, sujeito a sanções em caso de incumprimento, terá um importante e decisivo papel a cumprir”, escreveu no Jornal de Negócios, Francisco Pinto Balsemão, chairman da Impresa (proprietária da VISÃO).

Ao longo da campanha eleitoral nos EUA, enquanto Hillary Clinton canalizava para a televisão o grosso do investimento na promoção da candidatura, o seu rival apostava a maior parte das fichas na internet. Os sites conservadores proliferaram como cogumelos e, às tantas, tornou-se complexo distinguir os que agiam por interesse ideológico dos que reproduziam os mesmos conteúdos movidos apenas pelos cliques que geram lucro.

Um caso que nunca deixou dúvidas foi o site Breitbart News, conotado com a extrema-direita.

Em agosto, quando Hillary Clinton cancelou ações de campanha devido a problemas de saúde, a notícia ali publicada foi ilustrada com uma imagem supostamente elucidativa da débil condição física da candidata democrata, que surgia amparada nos braços por duas pessoas. Pequeno problema: a fotografia tinha sido captada em fevereiro, após Hillary ter tropeçado ao subir umas escadas. O homem que liderava o projeto, Steve Bannon, será agora estratego e conselheiro sénior na administração de Trump.

TOP 5
Notícias falsas com mais interações no Facebook

Alguns dos endereços criados são cópias de sites conhecidos, como o ABC News ou o TMZ

1 “Obama assina ordem executiva para proibir o Juramento de Lealdade nas escolas a nível nacional”

SITE: abcnews.com.co

MÊS DE PUBLICAÇÃO: Outubro

INTERAÇÕES NO FB: 2 176 milhões

2 “Mulher detida por defecar em cima da secretária do patrão depois de ganhar a lotaria”

SITE: thevalleyreport.com

MÊS DE PUBLICAÇÃO: Abril

INTERAÇÕES NO FB: 1 765 milhões

3 “Papa Francisco choca o mundo ao apoiar Donald Trump para Presidente, diz comunicado”

SITE: Ending the Fed (removido)

MÊS DE PUBLICAÇÃO: Outubro

INTERAÇÕES NO FB: 961 mil

4 “Trump oferece viagens só de ida para África & México para quem quiser deixar a América”

SITE: tmzhiphop.com

MÊS DE PUBLICAÇÃO: Novembro

INTERAÇÕES NO FB: 802 mil

5 “Lata de bolos de canela explode dentro do rabo de um homem durante incidente em furto”

SITE: empireherald.com

MÊS DE PUBLICAÇÃO: Abril

INTERAÇÕES NO FB: 764 mil

Fonte: Análise a 96 sites associados a notícias falsas / Buzzfeed

DETETOR DE MENTIRAS
Guia básico para identificar notícias falsas:

  1. Confirmar endereço URL como fonte fidedigna
  2. Verificar se o tema em causa está a ser abordado por algum media de referência
  3. Identificar e validar as fontes de informação no artigo
  4. Ler mais do que um artigo sobre o tema que despertou o seu interesse
  5. Um bom exercício pode ser perguntar-se: qual a probabilidade do que acabei de ler ser verdade?
  6. Procurar a secção Sobre (ou About) e pesquisar no Google para confirmar se alguma fonte credível já escreveu sobre essas pessoas
  7. Observar as fotografias para detetar manipulações descaradas
Rui Antunes
Jornalista
Visão 05.01.2017