Agarrar o céu

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O madeiro ainda arde nos largos de tantas aldeias, a perder fôlego à medida que as horas passam. Há filhós e sobras da mesa da consoada, mas as portas vão-se fechando. É dia de regresso ao trabalho e no interior despovoado, que em momentos de festa ganha gente e vida, as ruas voltam a esvaziar-se. Espalhados pelo país, há pequenos lugares em que só resistem um ou dois habitantes. Uma delas é Podentinhos, no concelho de Penela.

Joaquim Reis, de 79 anos, vive sozinho a cerca de três quilómetros da sede de concelho, com parte do caminho de acesso em terra batida. Recebe apoio domiciliário prestado pela Misericórdia local, mas há dias o Município testou um projeto de entrega de refeições por drone. Em quatro minutos, o aparelho levou-lhe a marmita. A tecnologia funcionou na perfeição. Mas nesse dia não houve gente a olhar para Joaquim Reis. Não houve uma mão humana a tocá-lo. E será assim sempre que a escolha para lhe entregar o almoço for um drone.

Não nos faltam soluções tecnológicas para ultrapassar os obstáculos e ir cada vez mais longe, mais depressa. Falta-nos, tantas vezes, humanidade e toque. Não (apenas) a humanidade que nos faz sentir horrorizados perante a tragédia que se vive em Alepo. Ou a compaixão que nos leva a olhar com mais intensidade, nesta altura do ano, para os sem-abrigo, os doentes ou os mais carentes de tudo. Falta-nos a capacidade atenta de ver, 365 dias por ano, tanta solidão com que coabitamos.

Há quem se indigne com o consumismo, quem reclame da religiosidade, quem se sinta deprimido com a febre desta época e a falta de quem já não pode partilhá-la, quem vibre e faça festa. Mas o Natal é, afinal, tão simples como isto: presença e vontade de tornar o Mundo um lugar mais quente e melhor. E há pessoas que conseguem sê-lo e que fazem a diferença em gestos banais do quotidiano, sem perceberem os milagres que a toda a hora transportam consigo.

Haverá quem olhe para o calendário e sinta que esta crónica está atrasada. Mas que nunca passem os votos de boas-festas. Porque nada muda se reclamarmos dos bombardeamentos na Síria, da taxa de pobreza em Portugal, das injustiças sociais e laborais, mas não mexermos uma palha por quem está ao nosso lado. Sempre que alguém transporta um pouco de céu entre as suas mãos, o Natal acontece.

Inês Cardoso
JN 26.12.2016