Deveres humanos

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Destacados ativistas dos direitos humanos têm-nos repetido que sem a sua efetividade jamais teremos Democracia digna desse nome. A democracia está a enfraquecer-se a grande velocidade, criando descrédito em milhões e milhões de cidadãos e obrigando-os todos os dias a respostas de emergência.

Nas mais diversas latitudes, observamos intervenções das instituições, inclusive estados e conjuntos de estados, que violam leis, tratados e importantes compromissos em nome de uma “realidade” que a tudo se sobrepõe. Ao mesmo tempo, as pessoas vivem debaixo de um constante apelo para que se adaptem acriticamente.

O que sustenta e alimenta essa “realidade”? É o “pragmatismo” que visa colocar todas as relações e atividades humanas debaixo do objetivo do lucro: mercadorizar tudo, incluindo os nossos direitos e deveres. Mas a dignidade do ser humano e a sacralidade dos seus direitos não são mercadorizáveis!

Em dezembro de 1998, José Saramago aproveitou o facto de a Declaração Universal dos Direitos Humanos completar 50 anos para, no seu discurso no banquete com que se encerraram as cerimónias da entrega dos prémios Nobel, denunciar a esquizofrenia em que a humanidade está mergulhada, quando dispõe de tantos meios técnicos e científicos com que pode vencer desafios até há pouco impensáveis e não é capaz de cumprir deveres morais a que coletivamente está obrigada, deixando multiplicar-se as injustiças e desigualdades, ou assistindo indiferente a violentos sofrimentos humanos.

Disse Saramago: “Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. (…) Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres”.

Reivindiquemos então, a obrigação coletiva e o dever de cada um de nós respeitar e fazer respeitar os direitos reconhecidos na Declaração Universal. Assumamos o dever de pensar, de agir e de transformar a sociedade para que o Mundo seja um pouco melhor.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos significou um enorme avanço, situado exatamente no seu universalismo. Num Estado social de direitos democrático, os seres humanos são cidadãos em plena igualdade. Entretanto, a Declaração veio proclamar um extraordinário quadro de direitos a “todos os membros da família humana”, garantindo uma cidadania que está para além das fronteiras de qualquer Estado. O pensamento expresso por Saramago deu origem a um movimento em curso – suportado por grupos de trabalho que se vêm organizando na América Latina e na Península Ibérica, também com a participação de intelectuais e atores sociais de outras regiões – com vista à elaboração de uma Carta Universal de Deveres Humanos.

É imperiosa a luta determinada pela aplicação dos direitos humanos e um esforço para se alargar e cimentar o universalismo e a multiculturalidade que os devem sustentar.

Temos o dever de impor garantias de dignidade, de princípios éticos e morais no acesso a direitos sociais fundamentais ou ao conhecimento e à cultura, nas relações de trabalho, na relação com a natureza, com os patrimónios coletivos, com a política. Essas garantias e princípios têm imenso valor, contudo ele não é traduzível em cifrões nos processos de negócios da mercantilização em curso. E a dignidade não se negoceia!

Num daqueles grupos de trabalho, reunido nestes últimos dias em Sevilha, colocou-se-nos como imperativo imediato um pronunciamento sobre o problema dos refugiados na Europa, pois os dirigentes políticos europeus “negoceiam” a situação fazendo letra morta de convénios internacionais, da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, que proíbe as expulsões coletivas, da Convenção de Genebra sobre o direito de asilo.

Não nos restem dúvidas: se não houver espaço à dignidade e aos valores éticos e morais para tratar dos refugiados, todo o projeto europeu inexoravelmente ruirá!

Carvalho da Silva
INVESTIGADOR E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
JN 13.03.2016