Disfarçar o cadáver

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Entretidos a contar votos, e distraídos com a nova algazarra à volta da mercearia do nosso défice estrutural, nem ligámos àquele congresso de sábios, feiticeiros, ricos e poderosos deste Mundo que anualmente se reúnem no mesmo lugar onde Thomas Mann internou a mulher e onde se inspirou para escrever “A Montanha Mágica”.

E o que nos diz, desta vez, a sua bola de cristal? Más notícias. Umas, já sabíamos. Outras, são previsões. E outra, ainda, é bom que saibamos.

Já sabíamos, pela Organização Internacional de Trabalho, que há hoje mais 27 milhões de desempregados do que desde o início da grande crise, há oito anos. E que a chaga vai continuar a crescer.

Cínicas, as previsões do Fórum de Davos falam na “quarta revolução industrial” e em “destruição criativa de emprego”: a análise sobre as transformações na economia mundial e no mercado de trabalho antevê que, nos próximos cinco anos, por cada sete milhões de empregos que se perdem, apenas se recuperem dois – e quase sempre mais precários e de pior qualidade. Os mais de 12 portugueses desempregados por cada 100 disponíveis conhecem bem o fardo caseiro e os estilhaços importados. Mais ainda o terço de portugueses caídos na pobreza, em particular os idosos.

Mas não são apenas os efeitos da última grande crise que cavaram mais fundo as desigualdades, sobretudo no Sul da Europa. A revolução tecnológica que está a passar pelas nossas vidas distingue-se das anteriores pela velocidade, pela dimensão e pela força com que está a transformar por completo os sistemas de produção, distribuição e consumo. Exemplos comezinhos como o desaparecimento da intermediação em muitos negócios e setores de atividade (gasolineiras, supermercados, grandes superfícies) e a rápida extensão do comércio eletrónico supõem, por si sós, o desaparecimento de centenas de milhares de empregos.

Em nome da paz, é urgente estancar tal torrente e procurar alternativas, que vão desde o debate sobre a duração da jornada laboral à repartição do trabalho disponível. Mas governos, partidos, confederações patronais e também sindicatos do Velho Mundo, onde estacionamos, continuam a sacudir problemas, a erguer muros ao inevitável e a olhar para o próprio umbigo, concentrados nas próximas eleições e no regateio de acordos e tratados antigos cuja receita já todos vimos que faleceu.

Um velho jornalista que virou poeta dizia que a melhor maneira de disfarçar um cadáver é começar uma guerra. E é para ela que nos estão a empurrar. Mau feitiço, o daqueles ricaços da neve (assim lhes chama Bono, o cantor) que se juntam a cada inverno na montanha mágica.

Afonso Camões
Opinião JN 31.01.2016