O ângulo morto

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O atual governo tem razão quando afirma que enfrentou (bem ou mal é outro assunto) os problemas do setor bancário nacional, ao contrário do anterior governo e da troika que protelaram catastroficamente esse tema crítico. Mas já não tem razão quando afirma que a estabilidade no setor financeiro foi reconquistada. Ninguém pode prometer isso. Nem em Lisboa, nem em Berlim. O problema do setor financeiro (na Europa, é mais correto falar em setor bancário) é um dos maiores ângulos mortos da defeituosa engenharia da periclitante união económica e monetária (UEM). A culpa não é dos banqueiros, considerados individualmente como pessoas, mas sim das absurdas regras que os deixaram durante anos a fio entregues aos desvarios que sempre acometem os homens quando ficam entregues à sua ambição, sem regulação nem controlo. Os construtores da UEM ficaram cegos perante os riscos da banca do mesmo modo que os revolucionários bolcheviques deixaram que Estaline acumulasse mais poder despótico e arbitrário do que qualquer czar, convencidos de que a eventual bondade da causa dispensa a vigilância sobre os seus adeptos. Os ângulos mortos da ideologia nascem do facto de que há sempre gente pronta a confundir conhecimento com convicção. No caso da UEM a febre ideológica é tal que se continua a chamar “crise das dívidas soberanas” ao brutal aumento da dívida pública, entre 2008 e 2010, em que todos os Estados europeus incorreram para salvar os seus bancos atingidos pelas ondas de choque do subprime nos EUA. Os resgates a partir de 2010 (que serviram essencialmente para salvar a banca dos países credores), diabolizaram os povos, deixando na sombra a irresponsabilidade da banca na criação de gigantescos desequilíbrios financeiros na zona euro. A UEM foi criada com regras duras para os Estados (no défice, na dívida, na inflação), mas deixando a banca completamente à solta. Os países foram encorajados a quebrar todas as normas de prudência bancária, em nome da capacidade de “au-torregulação dos mercados” (a versão ultraliberal das fantasias do “bom selvagem” ou do “sentido da história”). Apesar de tudo o que poderíamos ter aprendido com a experiência da crise bancária de 1933, que levou nos EUA à federalização da garantia de depósitos, da supervisão e da resolução bancárias, os ideólogos da UEM deixaram a licença bancária e a garantia dos depósitos na mão das autoridades nacionais, preparando o caminho para a fragmentação em que se mergulhou ao primeiro sinal de crise. Pior ainda, o BCE, em vez de ser um banco central a sério, zelando pelo pleno emprego e a estabilidade geral do sistema económico, foi transformado num mero polícia sinaleiro da inflação (artigo 127 do TFUE), deixando os Estados completamente na dependência dos mercados (sobretudo, e mais uma vez, da banca europeia) para se financiarem. Ao proibir o BCE de adquirir dívida pública no mercado primário (artigo 123 do TFUE), as regras da UEM transformaram a banca no verdadeiro titular europeu do poder de emissão monetária através da criação de dívida, transformando os Estados de soberanos em meros clientes. Só uma verdadeira reforma financeira com visão europeia, e não a desajeitada e pomposa “união bancária”, que esquece o essencial (continuam a ser os Estados a salvar os bancos, como se viu com os empréstimos públicos ao Fundo de Resolução, cuja amortização demorará 30 anos), poderia fazer baixar o risco. No setor bancário, como em tudo o resto, a Europa trocou o sentido de propósito pelo prolongar indefinido duma agonia lenta.

Viriato Seromenho-Marques