Opinião

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A “maré grisalha” 
1 – No comentário que apresentou na SIC, logo após a manifestação dos indignados do passado 2 de Março, Ricardo Costa, director do Expresso, notou que o que esta manifestação trazia de novo, e com mais significado, relativamente à anterior, de 15 de Setembro, era a presença organizada de milhares de reformados, que constituíram uma das marés autónomas em que se desdobrou a iniciativa – a “maré grisalha” – e que em muito engrossaram as fileiras dos manifestantes.
Essa mesma nota foi salientada por Marcelo Rebelo de Sousa, na TVI, dia 3 de Março. 
Tenho-me referido, nestas crónicas e em diversas ocasiões, ao estatuto dos reformados na sociedade e no tempo em que vivemos, em particular no contexto do discurso e da retórica públicas de desconsideração e exautoração que visa esse sector tão significativo da população – dentro das velhas técnicas da propaganda, de inventar um bode expiatório e apresentá-lo às massas ignaras como portador de uma pretensa culpa colectiva, prejudicial aos interesses mais primários dessas massas, antes de lhe desferir a estocada fatal e como justificação desta.
Afinal, tantos reformados dedicam o seu muito tempo e saber ao trabalho voluntário nas Instituições de Solidariedade, seja como dirigentes, seja em serviços sociais. 
(Ainda na crónica do mês passado tive ocasião de eu próprio dar conta aos meus leitores da indignação que senti com um deputado da maioria, que, achando que fizera um figuraço, resolveu publicar um texto em que se referia aos reformados como a “peste grisalha” – contaminando, ele sim, a conotação semântica da palavra “grisalha” com os miasmas mortais da “peste”.) 
De par com os funcionários públicos, mas mais intensamente do que eles, os reformados estão hoje colocados no mesmo pelourinho em que o anterior Governo colocara os juízes e os professores, e com idêntica finalidade: captar o apoio dos outros, dos que estão fora do âmbito dessa condenação e da “culpa” – para depois alterar as condições de estatuto, carreira ou retribuição dos condenados.
No caso, confiscando-lhes as reformas ou os salários, em nome do “ajustamento”.
2 – Creio que tem havido na actual barreira de tiro cerrado dirigido aos reformados uma grosseira incompetência sociológica.
Os jovens dos gabinetes de “agit-prop” ou das agências de comunicação que organizaram a campanha estão numa idade perigosa, entre os 40 e os 50 anos: têm uma ideia vaga do que tenha sido o 25 de Abril e não têm ideia nenhuma sobre os anos que precederam a Revolução.
Mas têm a arrogância e prosápia toda – própria de quem sempre tem vivido, esses sim, das rendas públicas, à sombra do Orçamento de Estado.
Ora, a geração que agora se tem reformado, principalmente a mais qualificada, de cerca de 60/65 anos de idade, foi a geração que se forjou no combate contra o anterior regime, nas lutas estudantis e nas empresas, nos liceus e nas universidades.
Ainda traz na alma a vivacidade – agora associada à nostalgia – dos anos que imediatamente precederam e se seguiram à Revolução de Abril.
(A escolha da entoação colectiva da canção “Grândola, Vila Morena” tem essa filiação directa nos ideais de Abril.)
É a geração que começou a trabalhar nos anos 70 do século passado; e que agora, passados 40 anos, se reforma.
Teve, na juventude, a utopia do futuro – e agora dizem-na um peso, descartável.
Com plena capacidade intelectual e, embora em menor grau, boas condições físicas.
Indignados, pelo menos os reformados da função pública, por se terem sentido empurrados por sucessivos governos para uma reforma precoce, que não queriam, mas temerosos da gradual e uniforme degradação das condições de trabalho e de aposentação, principalmente a partir de 2007, e aceleradas nos dois últimos anos.
Estes reformados não correspondem ao estereótipo dos velhos sentados à lareira, de manta nas pernas, temerosos de dar uma opinião ou formular publicamente uma crítica, formados no “país do respeitinho” de antigamente, que Alexandre O’Neill tão bem retratou (- “Neste país em diminutivo/ – Respeitinho é que é preciso”).
Vão à luta.
Ajudam os filhos desempregados e cuidam dos pais inválidos.
Dar-lhes uma motivação é um risco para os aprendizes de feiticeiro, que não sabem lidar com o fogo.
3 – Detestam, além do mais, ser tomados por parvos, ou servir de pretexto para tomar por parvo o povo.
A intensidade da ofensiva levou-os a informar-se melhor sobre os números e as contas, as políticas e os desastres.
Hoje sabem todos que não é verdade que o Orçamento da Segurança Social, na parte relativa ao sistema previdencial, financiado pelas contribuições de patrões e trabalhadores, e que suporta o pagamento das reformas, seja deficitário, ou corra o risco de o vir a ser, de forma estrutural – como agora se diz -, nas próximas décadas.
Pelo contrário, sabem que os saldos desse Orçamento têm sido preciosos para compor o défice do Orçamento do Estado.
Também sabem todos das descapitalizações que, umas vezes por boas razões, outras por más razões, diminuíram as reservas financeiras da Segurança Social:
– a que foi devida à atribuição de pensões aos trabalhadores rurais e aos trabalhadores do serviço doméstico, nos anos 70 do século passado, sem reservas específicas para tal pagamento e que foram suportadas, portanto, pelas contribuições do regime geral;
– e também a descapitalização devida à instituição da pensão social, não contributiva, para as pessoas que não eram beneficiárias de nenhum sistema de protecção social – pensão que, durante os primeiros anos, foi também assegurada pelas contribuições do regime geral, em vez de o ser, como era devido, por transferência do Orçamento do Estado; 
– para não falar, agora no que toca às más razões, das aplicações financeiras de fundos da Segurança Social no BPN – e que foram pela enxurrada;
– ou das perdas financeiras sofridas pelas reservas da Segurança Social aquando das nacionalizações posteriores ao 25 de Abril, já que as Caixas de Previdência eram accionistas de referência de várias grandes empresas, então nacionalizadas;
– ou de os Governos, durante muitos anos, não terem transferido para a Segurança Social, como a lei impunha, os valores relativos às prestações não contributivas e à acção social.
Os reformados da função pública também não o sabiam antes – mas agora já sabem que, se a Caixa Geral de Aposentações se apresenta igualmente descapitalizada, foi por o Estado não pagar as contribuições que lhe competiam, durante muitos anos – como exige aos patrões privados.
(Pagava 1% de contribuições – em vez de 23,5%.)
E por ter cessado a admissão de novos beneficiários, o que fez com que os trabalhadores da função pública admitidos nos últimos anos já não paguem as suas contribuições para a Caixa Geral de Aposentações – que deixou assim de ter receitas -, passando a contribuir para a Segurança Social.
Dizer a esta gente, que lê livros e jornais, que conhece e interpreta o mundo em que vive, que tem à flor da pele o apelo à contestação e à luta, dizer a esta gente que as pensões para que contribuíram toda a vida são “generosas” e que afinal não contribuíram devidamente para elas, ou insinuar-lhes que são um fardo e uma despesa suportada pelos filhos, é uma ofensa à verdade que não vão deixar que fique.
E é chegar o lume ao pé da estopa.
Arde.
Sempre.
Henrique Rodrigues
(Jornal Solidariedade)