QUESTÕES E COMENTÁRIOS A PROPÓSITO DO DOCUMENTO “UMA DÉCADA PARA PORTUGAL”

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O relatório “Uma Década para Portugal”, Abril 2015, elaborado por um grupo de economistas, a pedido do Partido Socialista, tem o propósito de “encontrar o caminho de desenvolvimento sustentado” para Portugal. 
O documento tem, como não podia deixar de ser, a marca de quem o fez: economistas. Baseia-se, pois, num modelo económico-matemático, com objetivos predominantemente económicos, ao qual corresponde um algoritmo, do qual decorrem conclusões e recomendações subjacentes ao modelo. Sendo isto assim, admite-se que o relatório, sendo embora uma peça interessante, terá que ser integrado num documento de hierarquia superior, informado por considerações e objetivos ideológicos e políticos. 
Este presente texto, de questões e comentários, limita-se a apreciar as secções “4.1.2 Responsabilizar as empresas pelos custos sociais do desemprego” e “4.1.6 Diversificação do financiamento da 
Segurança Social”, focando assuntos relativos à Segurança Social, nomeadamente pensões.
1. A temática social está, a meu ver, no Relatório bastante subordinada à economia, sendo o social considerado instrumental relativamente ao económico. Algumas citações o justificam: 
a) “A partir daí, a taxa social de desemprego seria calculada como para as restantes empresas (este período pode ser ajustado com a evolução do ciclo económico).” – Página 33, linhas 23, 24 e 25. 
b) “A segurança social pública tem ainda como objetivos garantir um nível de coesão e equidade social e o crescimento económico sustentável.” – Página 36, linhas 5, 6 e 7. 
c) “Estes princípios baseiam-se num sistema com carácter de universalidade, em que as prestações e as contribuições dos seus participantes devem ser compatíveis com o crescimento económico e o emprego mantendo uma dimensão redistributiva eficaz.” Página 36, linhas 7, 8 e 9. 
d) “A melhoria das condições de sustentabilidade do sistema de pensões deverá levar em consideração seis aspetos fundamentais: 
……. 
5. a evolução económica do país (não apenas o produto, mas acima de tudo o emprego; 
…….” Página 39, linha 17.
2. Parece que a Segurança Social surge como uma necessidade devido a insuficiências do mercado e não como uma conquista civilizacional, expressão avançada da solidariedade entre os homens. Surge, assim, a Segurança Social, como fornecedora de um serviço num mercado carenciado. Tal se pode inferir do escrito na página 36, linhas 4 e 5:
“O sistema público de segurança social tem como objetivo garantir a provisão de benefícios obrigatórios para os quais, devido a falhas de mercado, a provisão privada é insuficiente ou inexistente”.
É legítimo pressupor que os autores se inclinam a levar a cabo políticas que eliminem as falhas de mercado, dando caráter de existência e suficiência à provisão privada. É uma visão liberal em que o mercado é ideologicamente a melhor maneira de providenciar às necessidades humanas e sociais.
3. Os cálculos contidos no inserto da página 37 são feitos de uma forma aligeirada, conduzindo a uma taxa de reposição de 54%. Este valor afigura-se extremamente baixo, pelo que deveria ter sido tomado como ponto de partida para um cálculo mais rigoroso. O simples facto de ser assim expresso, ainda por cima acompanhado da credibilização dos números, sempre abonatória, leva a perguntar das razões subjacentes à sua escrita. 
Considerando, ainda, o que consta do parágrafo seguinte da página 37, enunciando uma “recente combinação de fatores”, parece potenciar uma eventual reavaliação dos algoritmos de cálculo das pensões.
4. Recomenda o Relatório, na página 40, linhas 6, 7 e 8:
“A necessidade de garantir uma completa homogeneidade dos diferentes regimes no que respeita as regras de cálculo para a formação de pensões, particularmente eliminando as discrepâncias que ainda existem entre os regimes geral da Segurança Social e da CGA;”
Será que, quando se preconiza “completa homogeneidade dos diferentes regimes”, se subentende que seja de aplicação universal e imediata, logo de efeitos retroativos?
5. Na página 40, linhas 9, 10 e 11, lê-se:
“A reavaliação do fator de sustentabilidade face às alterações ocorridas, quer de contexto quer legislativas, nomeadamente fortalecendo a eficácia do fator e a sua articulação com a idade de reforma;”
Parece que poucas dúvidas podem restar no entendimento de “fortalecendo a eficácia do fator”. Significa pura e simplesmente abaixamento das pensões.
6. Cita-se da página 43, linhas 11, 12 e 13:
” A proposta alarga o financiamento da Segurança Social com a consignação de parte da receita sobre as pessoas coletivas (IRC), de um novo imposto sobre heranças de elevado valor e das receitas adicionais geradas pela taxa de penalização da rotação excessiva, definida anteriormente”.
Independentemente da mais que presumível redução de receita da Segurança Social, que adiante se abordará, desde já se afigura como uma ameaça para a mesma Segurança Social, visto passar a ser mais dependente do Orçamento do Estado. O valor das pensões ficará à mercê das necessidades e arranjos orçamentais, que terão a incerteza e a volubilidade próprias de cada momento político. O que, presentemente, é previsto com bastante aproximação, ficará mais fluido e inseguro no futuro. Mais, nada é dito na proposta se estes impostos ficam consignados ao regime contributivo, ou ao subsistema social ou aos dois. 
7. Na mesma página 43, linhas 18, 19, 20 e 21, do Relatório consta:
“Em contrapartida desta alteração de base de financiamento e atendendo às dificuldades específicas do sector empresarial português, propõe-se uma redução da taxa contributiva para a segurança social a cargo dos empregadores. Esta redução ocorrerá de forma gradual, à medida que se consolidam as fontes de financiamento alternativas com o seguinte ritmo: 1,5 p.p. em 2016, 1,5 p.p. em 2017 e 1 p.p. em 2018”.
Uma imensa consequência desta medida está na perda da intangibilidade da TSU. Muito recentemente houve forte reação social à tentativa de mexida no seu valor. Agora, parece desenhar-se um consenso alargado à possibilidade da sua alteração. Deixou de haver, na presente formulação, uma linha vermelha que guarde a sua continuidade. O Centro-Esquerda e o Centro-Direita aparecerão alinhados. Perde-se assim um certo caráter emblemático e identificador, tradicional da Esquerda.
Parece pouco prudente confiar na consolidação das fontes de financiamento alternativas, como esperançadamente anuncia a proposta. Se não acontecer essa consolidação, faz-se o ajustamento à custa do abaixamento das pensões? Parece não restar outra alternativa.
8. Neste ponto se trata das reduções da TSU e suas implicações nas pensões e no estímulo à economia.
8.1 Valor das reduções
O Relatório prevê reduções da TSU, tanto do lado das empresas como dos trabalhadores. 
As empresas verão reduzida a sua contribuição para o financiamento da Segurança Social de cerca de 850 milhões de euros, como consta da página 44, linhas 13, 14 e 15:
“Tomando como referência as contribuições de 2013, os 4% envolvidos nesta medida constituem um estímulo à economia de cerca de 850 milhões de euros. Esta é a receita direta perdida com a medida”.
Para compensar esta perda, propõe o Relatório três fontes (página 44, linhas 29 a 34):
1ª) “Do ponto de vista das empresas, parte do financiamento continua a ser feito através das empresas, mas agora com a receita do IRC. …O financiamento originado, de acordo com o Documento da Reforma do IRC deverá ascender a 240 milhões de euros.”
2ª) “A consignação da receita do imposto sobre heranças de elevado valor deverá gerar uma receita adicional de 100 milhões.”
3ª) A terceira fonte de financiamento, a receita obtida com a taxa que internaliza o custo social de despedimento deverá rondar os 100 milhões de euros”.
Admitindo, com otimismo, que os valores estimados para estes novos impostos vão ocorrer, ter-se-ão, ainda, que ir buscar ao Orçamento do Estado mais 410 milhões de euros (850 milhões – 240 milhões – 100 milhões – 100 milhões).
Pelo seu lado, os trabalhadores verão a sua contribuição para a Segurança Social reduzida de 4%. No ponto 4.2.2, página 48, último parágrafo, diz-se:
“A proposta caracteriza-se numa redução da taxa de contribuição para a segurança social nas componentes do trabalhador. Esta componente é reduzida de forma generalizada num montante até 4%. A redução corresponde a 36% da contribuição total dos trabalhadores e será feita de forma gradual entre 2016 e 2018, ao ritmo de 1,5% em 2016, 1,5% em 2017 e 1% em 2018.”
Logo a seguir no inserto se quantifica:
“O valor das contribuições que serão objeto de redução é de 1050 milhões de euros e corresponde a 4 p.p. do valor anual das contribuições feitas sobre o salário base…..”
8.2 Reflexos nas pensões 
O Relatório nada diz de concreto sobre as implicações nas pensões da redução da contribuição empresarial para a TSU. Parece estar implícito que esta redução será compensada integralmente pelo Orçamento do Estado, com a novidade aliciante e moderna da diversificação das fontes de financiamento. Mas, esta compensação acontecerá através do Orçamento do Estado, o que, como atrás se disse, torna extremamente frágil a garantia no tempo do valor das pensões.
Já da parte dos trabalhadores, é dito no Relatório que a correspondente redução se refletirá integralmente no valor das pensões (página 49, linhas 1 a 3):

“O financiamento da medida é feito através do ajustamento das pensões num valor actuarialmente neutro para o sistema. Quer isto dizer que as pensões verão refletidas as menores contribuições realizadas durante o período de aplicação da medida.”
No longo prazo, a redução de 4% dos trabalhadores para a TSU terá a consequência atuarial de uma diminuição de 11,5% (= 4% a dividir por 34,75%). Esta redução é certa. Já no que respeita aos 4% da parte das empresas, uma razoável e historicamente justificável desconfiança, poderá levar futuramente a outros 11,5% de abaixamento. Logo, somando as duas diminuições, as pensões poderão vir a ser, em média, cortadas de 23%. Será isto um fantasma? Porém, a acontecer, então se à taxa de reposição de 54% admitida no inserto da página 37, tirarmos estes 23%, ficaríamos com um valor da pensão igual a 32%! Por ser tão baixo este valor, dir-se-á que algo está mal, que não pode ser. Seja nas considerações deste texto, seja no indiciado no próprio Relatório, haverá, pois, que olhar criticamente para este tema.
Uma nota deve ser acrescentada. O trabalhador ativo de hoje, quando se reformar, experimentará um corte tremendo no seu rendimento mensal. O que não é recomendável, nem próprio de um sistema previdencial que se preze.
8.3 Reflexos na economia
O Relatório valoriza, sobretudo, a economia, o que não se pode levar a mal. E, se reduz ou fragiliza as pensões, não é por perversidade. É por ser necessário, porque a economia e o bem geral a isso obrigam. Porém, algumas dúvidas se podem erguer sobre as reais vantagens para a economia resultantes das reduções da TSU.
No que respeita à redução às empresas, diz-se claramente, na página 44, linhas 13 e 14:
“Tomando como referência as contribuições de outubro de 2013, os 4 p.p. envolvidos nesta medida constituem um estímulo à economia de cerca de 850 milhões de euros.”
O Relatório não diz que as pensões virão a ser afetadas, preconizando que os 850 milhões de euros perdoados às empresas serão compensados por impostos. Pergunta-se: em que medida não são os impostos retirados à economia? No final no que respeita ao financiamento da economia, não será a medida praticamente neutra?
No respeitante à redução aos trabalhadores o Relatório diz, como já atrás se referiu, que “O financiamento da medida é feito através do ajustamento das pensões num valor actuarialmente neutro para o sistema.” Mais adiante, na página 49, último parágrafo: “Tomando como referência as contribuições de outubro de 2013, esta medida constitui um estímulo à economia de 1050 milhões de euros”. Não se entende que estímulo à economia pode ocorrer, se às famílias dos pensionistas vão retirar os mesmos 1050 milhões de euros que as famílias dos trabalhadores ativos vão receber.
9. Não se julga despropositado acrescentar, a terminar, o que diz alguém conhecedor destes assuntos. A páginas 56, do seu livro “O Capital no século XXI”, edição do Círculo de Leitores, refere Thomas Piketty: “Muito frequentemente, os economistas estão antes de mais preocupados com pequenos problemas matemáticos que apenas a eles interessam verdadeiramente, o que permite que possam sem demasiado trabalho dar ares de cientificidade, e evitem ter de responder às perguntas muito mais complicadas que o mundo em que vivem lhes apresenta.”
E vem à memória um célebre e triste modelo apregoado por alguns, há uns quatro anos, como mirífico, que deu o que tem dado, e no fim foi rejeitado pelo criador.

30 de abril de 2015

Carlos Sá Furtado
Professor Catedrático Jubilado da FCTUC

Associado APRe! nº390