Um país que se autoderrota

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Pedro Adão e Silva

Primeiro era o plano que não existia e as vacinas que não iam chegar. Depois, era a impreparação generalizada do país para administrar vacinas. No dia em que a vacina chegou, o problema passou a ser distinto: em lugar de um diretor do serviço de doenças infectocontagiosas de um dos maiores hospitais do país, o primeiro vacinado deveria ter sido outro.

É um padrão conhecido. Um país que desconfia, que se autoderrota, mesmo contra as evidências, e que aguarda com entusiasmo provinciano que as coisas corram mal. Esquecemos com isso que nenhum país estava preparado para lidar com esta pandemia e que em todos os casos foram cometidos erros. Muitos erros, aliás. Mas, tendo em conta o que já percorremos, há motivos para nos congratularmos com a resposta que os serviços públicos portugueses deram às solicitações dos cidadãos: a segurança social que teve de processar centenas de milhares de pedidos de lay-off, enquanto os seus funcionários estavam em teletrabalho; o ensino que teve de se adaptar às aulas à distância; os lares, geridos numa combinação singular entre recursos públicos e boas vontades particulares, que se adaptaram a situações limite; e o Serviço Nacional de Saúde, que conseguiu lidar com uma pressão que se anunciava ingerível.

As respostas públicas em Portugal têm problemas. Mas quem conheça um pouco da realidade dos serviços públicos noutros países, muitos deles bem mais poderosos economicamente, sabe que a nossa performance, em muitos domínios, está longe de nos envergonhar.

Agora, o desafio é vacinar massivamente num curto espaço de tempo. E, quanto a isso, há razões para estarmos otimistas. Num contexto em que, no primeiro mundo, o problema deixou de ser o acesso às vacinas para se transformar em objeções filosóficas à sua toma (que levam a que pequenos grupos de não-vacinados sejam uma ameaça à imunidade de grupo), de acordo com um inquérito em 67 países sobre confiança nas vacinas, Portugal é líder europeu quanto à fidúcia e está em terceiro no que toca à crença na eficácia das vacinas. Sintomaticamente, temos níveis de cobertura de vacinação, por exemplo de sarampo e rubéola, superiores a 95% (fazemos parte do grupo de cinco países europeus que supera esta barreira). Alguma coisa teremos feito bem.
Quer isto dizer que não há dificuldades no horizonte? Claro que há. Persistindo 800 mil portugueses sem médico de família, é fundamental sinalizá-los precocemente, sob pena de indivíduos prioritários ficarem de fora da primeira vaga. Acima de tudo, quando, em velocidade de cruzeiro, for necessário vacinar 50 mil por dia, será difícil compatibilizar este objetivo com a atividade normal do sistema, pelo que faz sentido ponderar caminhos alternativos (por exemplo, criar centros de vacinação, à imagem dos hospitais de campanha preparados em abril). O que faz pouco sentido é assumirmos que somos incapazes de enfrentar coletivamente dificuldades.
 
 Pedro Adão Silva