Uma pérola: quando o mar bate na rocha, quem se lixa (não) é o mexilhão

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Ainda e sempre o mexilhão. Não me refiro ao bivalve agarrado às rochas costeiras temente face aos seus predadores naturais, como por exemplo a estrela-do-mar. Mas à popular asserção de que quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão.

Há dias, o Primeiro-ministro (PM) falou num seminário sobre economia social em Braga, certamente estimulado por uma audiência grata depois de uma revisão do estatuto legal das IPSS em que o Estado entregou, em alguns aspectos, funções de tutela que só a ele deveriam competir. E, na sua intervenção, resolveu fazer doutrina sobre o molusco: “Ao contrário do que era o jargão popular de que quem se lixa é o mexilhão, de que são sempre os mesmos (…) desta vez todos contribuíram e contribuiu mais quem tinha mais, disso não há dúvida”.

Certamente tratou-se de um lapso. Ou de uma súbita amnésia. É que ao ouvi-lo lembrei-me, sobretudo, dos mais 600.000 desempregados (e inactivos desencorajados). Lembrei-me do aumento da taxa de pobreza para 19% da população e da taxa de privação material severa para 10,9%. Mas também me lembrei dos pensionistas com pensões acima de 250 euros que não têm aumentos desde 2010 (perda de 8% do valor real) e dos que, além disso, pagaram um imposto exclusivo, a CES. Lembrei-me de funcionários com vencimentos congelados ou diminuídos. Lembrei-me da menor comparticipação nos medicamentos ou da redução de descontos nos transportes públicos para os mais velhos. Lembrei-me do aumento brutal dos impostos sobre o trabalho e da sobretaxa do IRS que transformou a classe média em ricos fiscais (por exemplo, uma matéria colectável de 22.000 euros tem uma taxa marginal de 40,5%!). Lembrei-me do aumento do IMI para a habitação própria. Lembrei-me da diminuição inexplicável dos beneficiários de prestações sociais como o rendimento social de inserção, complemento solidário para idosos e abono de família (a agravar em 2015 — diz-se … por causa do mexilhão — com um tecto ainda por explicar). Lembrei-me da passagem da taxa reduzida (6%) para a taxa normal (23%) do IVA de alguns bens essenciais como a electricidade. Lembrei-me, ainda, de muitas taxas e taxinhas sobre os mexilhões e outros bivalves.

Neste orwelliano “triunfo dos mexilhões”, todos os mexilhões parecem iguais, mas há uns mais iguais do que outros.

É que, neste balanço memorial, não me esqueci da diminuição do IRC e da conta de outros moluscos (que não mexilhão) que se agarraram a certos bancos da costa offshore e que o mexilhão de cá vai pagando.

E embora não pareça,o mexilhão, tal como a ostra, tem a capacidade de produzir pérolas. Como a que o Senhor PM apresentou, com garbo e convicção, em ambiente de economia social, que é como quem diz, de economia de dom!

António Bagão Félix
PÚBLICO, 8 de Dezembro 2014